
Uma entrevista escutada no programa 2 da RDP dava conta da divulgação através d internet do acervo global da revista “O Tempo e o Modo”, que se publicou entre 1963 e 1970.
Por M. Correia Fernandes
O diário “Público”, em texto assinado por Luís Miguel Queirós, lembra que a publicação marcou a luta contra a ditadura por parte de intelectuais e movimentos católicos, e terminou como referência ideológica do MRPP (Movimento Reorganizador do Partido do Proletariado) em que pontificou Arnaldo Matos, recentemente falecido. Em 2020 completam-se 50 anos do términus da sua publicação.
“O tempo e o modo” foi uma revista de reflexão social e política, que surgiu nos anos de 1963, na esteira do jornal “Encontro” da JUC (Juventude Universitária Católica, onde colaboraram muitos jovens cristãos universitários ao longo dos anos que conduziram até à revolta de abril de 1974). O jornal “Encontro” nasceu a partir do I Congresso da JUC (1953, presidido por Adérito Sedas Nunes), passou pelo Grande Encontro da Juventude (1963, presidido por João Salgueiro, quando decorria o Concílio Vaticano II) e teve papel relevante na divulgação dos resultados de um Inquérito à Juventude Universitária em 1967.
Desempenhou importante papel na consciencialização cristã, com atenção tanto à teologia nas novas linhas que começaram a ser abordadas nas escolas europeias, como aos domínios da sociologia, da teoria política e das novas ideologias. Entre os seus colaboradores surgiram nomes mais tarde notáveis, com Bento Domingues, João Bénard da Costa, Nuno Teotónio Pereira, Maria de Lurdes Pintasilgo, João Salgueiro, Xavier Pintado, Rogério Martins, Francisco Pereira de Moura, Maria Manuela Silva e João Gomes (que colaborou na Voz Portucalense nos anos 1970),entre muitos outros, entre os quais o que foi seu diretor, António de Sousa Franco.
Sobre este tema pode consultar-se, disponível na net, o texto de Adelino Gomes, “A JUC, o jornal Encontro e os primeiros inquéritos à juventude universitária: Contributos para a história das modernas ciências sociais em Portugal”. Para dar uma dimensão menos de jornal e mais de revista, com textos mais longos e de maior desenvolvimento temático, marcada por um esforço de mais aprofundada análise da sociedade o do pensamento então emergente, um grupo oriundo desses universitários fundaram a revista “O Tempo e o Modo, revista de pensamento e acção”. O 1.º número, publicado em janeiro de 1963, trazia artigos de António Alçada Baptista (“Notas sobre a Perturbação de certas Sociedades Contemporâneas”), Jorge Sampaio e Jorge Santos (“Em torno da Universidade”), Mário Soares (“Oliveira Martins e a Questão do Regime”, Paul Ricoeur (“O Paradoxo Político”), M. M. (“O Concílio Vaticano II”), João Gomes (“Origem e Repercussão da Crise Cubana”) e Ruy Belo (“Poesia e Arte Poética em Herberto Helder”), além de “Noticiário Crítico” a “Artes e Letras”.
Em 1994, Nuno Estêvão Ferreira dedicou a esta revista um estudo, editado na Lusitânia Sacra (2.ª série, n.º 6): “O Tempo e o Modo. Revista de Pensamento e Acção (1963-1967): repercussões eclesiológicas de uma cultura de diálogo”. Este artigo integra o repositório da Universidade Católica Portuguesa. O seu mentor mais entusiástico foi certamente António Alçada Baptista (1927-2008). Oriundo de família abastada da Covilhã, com estudos em colégio de jesuítas, formouse em Direito, foi advogado e depois jornalista e escritor. Foi por sua iniciativa que se reuniram outras figuras contemporâneas ligadas à reflexão proporcionada pela JUC para realizarem uma abordagem de uma temática de leitura humanista e cristã, com influência europeia, sobretudo francesa, cuja cultura nesse tempo era particularmente influente entre nós, onde avultam nomes como Jean Marie Domenach ou Paul Ricoeur.
Perfilava-se a ideia de uma linha de renovação, de pensamento e ação. Por ela passaram nomes como Pedro Tamen, por Nuno Bragança, João Bénard da Costa, Alberto Vaz da Silva, Mário Murteira e o sector da esquerda interventiva na oposição ao regime de Salazar e mais tarde de Marcelo Caetano. Alçada Baptista passou a uma intervenção diferente, através do romance, onde procurava dar uma visão presente na sociedade do pensamento cristão (ele próprio foi membro do movimento das Equipas de casais de Nossa Senhora, que entretanto se tinha instalado em Portugal).
A sua obra “Peregrinação interior” (1971) tornou-se emblemática nessa época de releitura social e de inserção política e social dos conceitos veiculados e interpretados pela teologia cristã. Escreveu depois uma segunda obra, também romanesca, com o mesmo título (“Peregrinação interior – II”, 1982), que desembocou em “Os nós e os laços” (1985), já com muita água passada por baixo das pontes da história recente de Portugal. A sua reflexão estendeu-se em obras como “O Riso de Deus” (1994). O período da década de 1970 e 1980 transparece na obra que escreveu em 2002 “Um olhar à nossa volta”, já nos caminhos de entrada no século XXI.
Entretanto o seu prestígio acentuou-se com várias condecorações e reconhecimentos dos Presidentes Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio, tendo presidido à comissão organizadora das celebrações do 25 de abril desde 1988 ao longo de vários anos. Ligado a este projeto esteve a ação da Livraria Moraes, dedicada ao pensamento e à poesia, então editorialmente pouco atraente, que ele adquiriu e dirigiu até 1972 e onde promoveu a publicação de pensadores de raiz e inspiração cristã, criando também a coleção «Círculo de Poesia» onde surgiram nomes como Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena. Alçada Baptista foi marcado pelo espírito cristã e pelo espírito democrático, pelo sentido progressista do desenvolvimento e participação social e dos valores da liberdade, o que o levou a empenhar-se na luta política e no próprio diálogo com Marcello Caetano (que fora seu professor), esperando como muitos na altura a possível liberalização do regime, que não viria a acontecer, e que contestou na obra “Conversas com Marcello Caetano”.
Após abril de 1974 iniciou uma colaboração regular com a Imprensa, tendo sido diretor do diário O Dia, e cronista de várias outras publicações que entretanto emergiram. Outro nome relevante dessa iniciativa Foi João Bénard da Costa, que se notabilizou como crítico de cinema (recentemente foi publicado um primeiro volume das suas
crónicas (1300 pág.), sempre muito fundamentadas, de ampla análise, e revelando nomes dos mais notáveis cineastas de então, em que sobressaem nomes como Charles Chaplin, Robert Bresson, Luis Buñuel, Ingmar Bergman, Claude Chabrol e os portugueses Brun do Canto e Pedro Costa, bem como Manoel de Oliveira, em cujos filmes chegou a entrar como intérprete (como “O passado e o Presente”, ou “Amor de Perdição”). Foi depois Diretor da Cinemateca Portuguesa, que notavelmente valorizou e que agora edita as suas crónicas.
A partir de 1970 a revista “O tempo e o modo” (cujo significativo título tem sido utilizado em numerosos projetos interventivos) recebeu nova orientação, muito marcada pelas ideologias marxista e maoista, cujos mentores, como aconteceu com outros organismos e publicações de inspiração cristã, se assenhorearam da orientação contestatária do próprio regime para introduzirem nos textos e nas estruturas a sua ideologia e as suas práticas, sob orientação de mentores oficiais desses movimentos.
A revista tornou-se, nesta última fase, terminada em 1970, como repositório da ideologia de inspiração marxista não alinhada com as teses propostas pela doutrinação de influência soviética, como refere Luís Andrade. No seu universo de todos esses anos, constitui um conjunto importante de temas que nos permitem verificar como as ideologias sobrem e caem, permanecendo apenas o que é essencial: a busca de um pensamento humanista, marcado pela centralidade da pessoa e pela busca de soluções para a sociedade, que não são aquelas que mentores dogmáticos, em tempo aparentemente favoráveis, pretendem edificar.