A causa das coisas
Por António José da Silva
Pela extensão geográfica que atingiu, e pelas vítimas que provocou e ainda vai provocar, o ciclone IDAI ficará certamente na história das grandes calamidades que, mais ou menos repetidamente, se vão abatendo sobre o continente africano. Desta vez, a tragédia atingiu com maior gravidade pelo menos três países, Malawi, Zimbabwe e Moçambique, embora este tenha sido o que mais fortemente sofreu as consequências do ciclone. Passados vários dias sobre o início do dilúvio, ainda não é possível contabilizar rigorosamente o número de mortos, feridos e desaparecidos, mas é praticamente certo que serão centenas ou miilhares. Neste número não se incluem todos aqueles que ainda serão vítimas das doenças provocadas pela fome e pela contaminação das águas que inundaram as zonas rurais, dando origem às imagens verdadeiramente impressionantes que as televisões trouxeram até nossas casas. A cólera e a malária são agora as grandes ameaças que o povo moçambicano tem de enfrentar.
Esta tragédia de proporções bíblicas provocou naturalmente, múltiplas reacções de solidariedade internacional, com destaque para a ONU, para a Índia, para a África do Sul e para Portugal, ou não fosse Moçambique um dos países mais pobres do mundo. Sem relativizar a importância objectiva e o significado ético dessas manifestações de solidariedade, pode dizer-se, no entanto, que estas não terão sido tão rápidas e tão organizadas quanto seria desejável. A verdade, no entanto, é que nenhum povo está preparado para uma calamidade destas, quanto mais um país tão carente de estruturas e tão castigado pela natureza. Seja como for, a solidariedade internacional, encabeçada pela própria ONU, acabou por chegar de forma mais organizada, ao mesmo tempo que as águas começaram a baixar. Pode assim dizer-se que o dilúvio poderá ser, dentro de algum tempo, uma trágica recordação.
A acontecer, este alívio não pode no entanto levar ao esquecimento ou menorização dos desafios que a população de Moçambique tem de enfrentar agora. Falamos da ingente tarefa da reconstrução das áreas afectadas, e sobretudo dos desafios sanitários que se levantam, nomeadamente os que se referem à progressão de doenças como a cólera e malária. Significa isto que a onda de solidariedade com Moçambique não pode diminuir e, muito menos acabar, só porque as televisões já não mostram quilómetros de terras alagadas, restos de “casas” destruídas e crianças em cima dos telhados e das árvores para fugirem à força das águas.
Mais uma vez ficou provado que as calamidades trazem ao de cima o que de melhor têm os homens, mas bom seria que estes não precisassem de calamidades assim, para serem solidários.