
O uso da linguagem é uma das características definidoras da identidade humana.
Por M. Correia Fernandes
Foi pela linguagem que se edificou a convivência humana: ela superou os sentidos, os odores, os gestos. Como variadas e várias são as pessoas e as instituições, também o seu uso é muito variado. Vejamos alguns casos.
O uso da correção gramatical
É sabido como o ter que falar rápido e segundo oportunidades, conduz a prática de solecismos gramaticais. Em muitos casos resultam da pressa e noutros da ignorância. Num concurso da televisão (os concursos de televisão apresentam questões muitos díspares, desde a linguísticas, as históricas, as literárias, as económicas, as políticas e aquelas em que se pergunta sobre cantores e grupos “rock”, sobre os quais os concorrentes sabem muito) fazem-se também perguntas de carácter linguístico e gramatical. Num dia destes a pergunta incidia sobre o pretérito mais que perfeito do conjuntivo do verbo ser.
Pois os concorrentes, pessoas formadas e ao que percebi uma delas docente, erraram ao esquecerem, entre as quatro propostas, a verdadeira, que era “fosse”, e baixaram três patamares. Também tem havido esquecimento de figuras e acontecimentos da nossa história, dos nossos escritores e da nossa cultura. Pode ser que o esquecimento conduza à aprendizagem.
Outra falha frequente ouve-se nas mais diversas situações de comunicação e pelos mais diversos intervenientes, que é a concordância do verbo com o complemento, em vez da concordância com o sujeito. Por exemplo, um jornal de referência falava, a propósito do “Brexit” (um neologismo anglo-saxónico quem tem corrido o mundo como um novo ente de razão de qualquer idioma) em “dar tempo a que se pensem em opções”, vez de dar tempo em que se pense em opções.
É um lapso frequente, sobretudo com o verbo “tratar-se de”: ouve-se quotidianamente dizer “trataram-se de assuntos relacionados com…”, “não se tratam de temas importantes…). Num questionário sobre língua portuguesa, a professora explicou claramente que a forma “tratar-se de” é forma impessoal, e por isso não deve concordar com o complemento verbal, devendo dizer-se “tratou-se de assuntos” ou então “trataram-se assuntos”. Mas a coisa está a tornar-se endémica, e como quem manda é quem fala nas televisões, qualquer dia até se muda a gramática.
O uso da linguagem da ofensa e da maledicência
Creio ser este um dos maiores dramas da linguagem atual. Em 21 de março de 2018, o diário “Público”, pela pena da jornalista Joana Gorjão Henriques, punha o dedo mediático na ferida social: “Há uma montanha de discurso de ódio nos media e redes sociais”. A frase traduzia o sentimento de quatro pessoas jovens de raças e origens diferentes, que se sentiam diretamente marcados por mensagens, particularmente as das chamadas “redes socais” (que em grande número de casos são antissociais).
De facto, esta designação de “redes sociais sempre me pareceu
um disfarce para o aproveitamento da tecnologia em favor da afirmação pessoal, do exibicionismo, da agressividade recalcada, e em situações extremas como a que aqueles jovens denunciam, para expressões de ofensa gratuita e de ódio recalcado. Portanto o eufemismo “redes sociais” constitui uma realidade tecnológica, mas uma falsidade social e uma excrescência ideológica e cultural.
Para um julgamento do fenómeno, recorria-se ao que diz sobre o tema o Código Penal: “As atuações motivadas por ódio, ou reveladoras de ódio, ou que forem acompanhadas de discurso de ódio são punidas pelo Código Penal”. Mas há muitas formas dessa expressão: o ataque pessoal pode ser denunciado pela pessoa atingida. Mas o problema de fundo não é apenas esse, o pessoal e que até pode ser de vingança.
O pior é o universo criado ou que se edifica com todas essas formas de discurso, que até pode não ofender diretamente ninguém, mas que ofende toda a sociedade. A linguagem do ódio, da ofensa, do crime, da coprologia instituída, das relações pessoais violentas não são males individuais, são criadores dum universo desumano, de agressão institucional, de espírito conflituoso e destrutivo.
A linguagem edificou o ser humano; se a linguagem continua a criar ambientes de conflito em vez de convivência, de agressão em vez de espírito fraterno, isto é um sintoma de muita gangrena social que importa erradicar. E não pode ser por qualquer código penal. Só pode ser pela via dos valores humanos, éticos e morais. Mas hoje em muitos espíritos da sociedade falar de ética e moral é também objeto de ódio, que não é apenas coisa pessoal, mas de todo um universo desumano que se vai forjando.
É por isso que as advertências dos escritos do Papa Francisco, ao dizer que uma tal mentalidade “leva à exploração da criação (pessoas e meio ambiente), movidos por aquela ganância insaciável que considera todo o desejo um direito e que, mais cedo ou mais tarde, acabará por destruir inclusive quem está dominado por ela” precisam de ser pensadas e interiorizadas no tecido social.
Há que reformular rapidamente o discurso mediático. Há que promover o discurso da ética e do espírito fraterno, em vez do discurso do ódio e da rejeição do humano.