A presença do 25 de abril na Voz Portucalense

O mês de março está ligado à nossa história recente, para além do inevitável e salutar equinócio da primavera, e do tradicional e comercial “Dia do Pai”, por dois acontecimentos separados por pouco tempo.

Por M. Correia Fernandes

Em 16 de março de 1974 teve lugar um golpe fracassado que ficou conhecido por “levantamento das Caldas” ou “golpe das Caldas”, segundo os peritos não devidamente preparado, mas que precedeu o golpe militar de 25 de abril de 1974, este sim cuidadosamente preparado e que destituiu o governo de então, presidido por Marcelo Caetano. Outro acontecimento posterior teve lugar em 11 de março de 1975 e que visava uma tomada do poder por forças de esquerda. As forças partiram de Tancos, mas o golpe foi abortado. Na sequência deste movimento, a maioria das instituições bancárias foram nacionalizadas, sendo Presidente da República Francisco da Costa Gomes e Primeiro Ministro Vasco Gonçalves. A memória destes acontecimentos levou-nos a repensar e a recordar aos leitores como a Voz Portucalense se situou em relação às transformações resultantes do golpe militar de 25 de abril de 1974 e suas consequências políticas e sociais.

Na primeira edição publicada após 25 de abril de 1974 (os processos tipográficos daquele tempo eram bem mais morosos que os atuais, mas não a atenção redatorial), saiu com a data de 4 de maio de 1974, e o título de primeira página registava: “25 de Abril – Esperança de dias diferentes”. Digno de registo e de leitura atual, em seu distanciamento temporal, é o editorial de M. Álvaro V. de Madureira, ao tempo diretor da VP, com o título “Do 28 de Maio ao 25 de Abril”. Iniciava-se com as palavras, de clara inspiração bíblica:

“Os pés de barro… Aquela estátua do sonho de Nabucodonosor era imponente no seu ouro, nas sua prata, no seu bronze, no seu ferro… mas tinha os pés de barro.

A metálica ditadura salazarista-caetanista tinha os pés de barro.

Tinha as armas, mas não tinha as almas. E as armas sozinhas de nada servem.

A alma do povo estava contra, a alma do exército também. Sem perda de sangue, sem alarido, sem perturbações da vida quotidiana, em poucas horas desabou um regime construído ao longo de mais de quarenta anos.

Uma das melhores coisas que uma ditadura pode fazer é morrer a tempo. Os povos não devem estar definitivamente privados dos seus direitos.

Os antigos romanos não deixavam que os seus ditadores exercessem a ditadura por mais de seis meses. Era um tempo de excepção. Aqui fez-se da excepção uma regra. Passavam-se os anos, não passava a vontade de permanecer na tarefa da opressão ou da repressão.

A ditadura salarista-caetanista não soube ou não pôde morrer a tempo.

E assim era inevitável que surgisse o 25 de Abril.

O Exército Português, em peso, levantou-se nessa madrugada de primavera e disse que o povo era livre”.

Esta adesão ao movimento revolucionário era depois temperada com a definição das linhas para o futuro:

“Tantas vezes enganados, tantas vezes desenganados. era difícil crer numa tão rápida libertação… ainda temos força, ainda temos vitalidade para acreditar na palavra de honra dos grandes responsáveis pela mudança do regime. A melhor homenagem que lhes podemos prestar é acredita neles”.

 Referia-se, claro, ao sentido da democratização da sociedade, da criação de condições para o exercício da liberdade política e ideológica, à constituição das estruturas sociais e políticas que deveriam orientar o exercício da liberdade conquistada.

Continuava, com uma visão de rara lucidez:

”As dificuldades vão ser grandes… mas podem e devem ser vencidas.

E recomendava aos responsáveis que os caminhos a seguir (o que não tinha feito) se deveriam orientar pelos “sublimes princípios cristãos”… “Se o fizer, e se à palavras se sucederem as obras, Portugal ficará a dever aos seu Exército e à Junta de Salvação Nacional que estabeleceu, um dos maiores serviços da sua História.

Se a uma ditadura sucedesse outra, seria uma calamidade”.

Sabemos que a prática se desenrolou nesse caminho. Os bispos de então, António Ferreira Gomes e Domingos de Pinho Brandão registavam as mensagens que receberam e os pedidos de tomada de posição que lhe eram solicitados pela imprensa da altura. Correspondendo a tais solicitações, nesse mesmo número publicavam uma nota assinada por ambos, em que se afirmava:

“A alegria, o entusiasmo e a esperança que dominam o maior número dos nossos diocesanos não devem obliterar nem adormecer o sentido das responsabilidades que nos são devidas, juntamente com os direitos correspondentes.

A paz, como sempre temos pregado, não é produto da força nem equivalente da vitória, mas fruto da verdade, da justiça, da tolerância, da generosidade e amor inter-humano. Se assim é na paz internacional, muito mais o tem que ser na paz cívica e social”.

Aceitando divergências naturais, apelavam à “lei própria do mundo humano, que é a razão e a moral”. Apelavam a “mobilizar todas as energias” em favor do respeito mútuo, evitando a ‘lei de Talião’, as ações de vingança”, contrapondo “as raízes vitais da Democracia, da Civilização e da Sociedade livremente humana”.

Sabemos como os receios manifestados nestas mensagens oportunas se vieram a verificar, ao longo de 1974. Foi por isso que na mensagem para o VIII Dia Mundial da Paz, D. António lançou um extraordinário repto que ficou a marcar a ação política subsequente: “Paz em Portugal, pela Reconciliação entre os Portugueses”.

Tal como as anteriores homilias da paz, que foram referência para a instauração dos valores democráticos e para os valores da paz e da liberdade e convivência social (motivo pelo qual foram controladas e censuradas pelo regime) assim esta mensagem por ocasião do Dia Mundial da Paz de 1975 constitui um texto fundador para uma nova dimensão da convivência democrática, partindo do sentido da reconciliação para orientar para os valores da razão e da convivência na cidadania e na ação política.

O acompanhamento jornalístico pela Voz Portucalense dos acontecimentos desse ano pautou-se pelos mesmos ideais, defendendo “A nossa liberdade e a dos outros”, logo no editorial do número seguinte, que afirmava sabiamente: “O povo português, no seu conjunto, está tão bem preparado para o uso das liberdades e direitos essenciais como outros povos civilizados. Com um pequeno treino poderá caminhar, a passo europeu”.

Certamente voltaremos ao assunto ao longo deste ano.