
O tempo da Quaresma tal como, aliás, o ano litúrgico no seu conjunto, faz parte da história da Igreja, assistida, certamente, pelo Espírito Santo, mas plenamente humana. É de «instituição eclesiástica».
São conhecidas, no essencial, as etapas da sua constituição. Inicialmente, para os cristãos, celebrar a Eucaristia era celebrar a Páscoa definitiva. Faziam-no, desde as origens, no «dia do Senhor», o Domingo, o dia da Igreja que, por isso, veio a ser a Páscoa semanal dos cristãos. Muito cedo, porém (seguramente já no século II mas, provavelmente, desde a primeira geração cristã), as diferentes comunidades começaram a celebrar a Páscoa como solenidade anual. Os cristãos provenientes do Judaísmo sabiam que o verdadeiro e definitivo Cordeiro pascal era o próprio Cristo: «Cristo, nossa Páscoa, foi imolado» (1 Cor 5, 7).
O núcleo celebrativo da solenidade pascal concentrava-se na Vigília e consistia na passagem do jejum à festa (Eucaristia), dando, assim, expressão sacramental à participação na Páscoa de Cristo. Bem cedo – sec. III – se estruturou o tríduo pascal «da paixão, sepultura e ressurreição de Cristo». E a importância desta solenidade cedo se traduziu no seu prolongamento festivo: o período de cinquenta dias até ao Pentecostes, vivido como um grande e único Domingo (um domingo de domingos). Em simetria com esse prolongamento organizou-se, depois, um período de preparação: primeiro, a «Semana Maior»; depois, um tempo de três Semanas; a partir do século IV são 6 as semanas deste tempo que, por isso, se chamará «quaresma» (= quarenta).
Sendo a Vigília pascal o centro do ano litúrgico e de toda a pastoral da Igreja, a Quaresma configurou-se como o tempo da preparação próxima dos catecúmenos para a iniciação sacramental e dos penitentes para a Reconciliação. A dimensão ascética, vivida por toda a Igreja, subordinava-se à potenciação desses processos sacramentais. Com o andar dos tempos, porém, acabou por se tornar quase autónoma.
O número 40 e o seu simbolismo não foi escolhido pela Igreja de forma arbitrária. Ela encontra-o, com efeito, na própria Escritura Sagrada: são os 40 dias que Jesus jejuou no deserto depois de ter sido batizado no Jordão (Mt 4, 2); os 40 dias que Moisés jejuou no Sinai (Ex 24, 18; 34, 28; Dt 9, 9); os 40 dias da caminhada de Elias em direcção ao Horeb (1 Re 19, 8); os 40 dias do dilúvio (Gn 7, 4); os 40 dias de prazo que Jonas deu aos ninivitas para se converterem (Jon 3, 4) e, certamente na camada mais profunda do significado deste número, os 40 anos do êxodo de Israel desde o Egipto até à Terra de Canaã (Sl 94, 10; Ne 9, 21; Act 7, 36).
Por todos estes motivos a Igreja de algum modo não se sente «autora» deste tempo litúrgico, mas como que o encontra já instituído por Deus na Escritura… Cristo em pessoa recapitulou e deu sentido pleno às quaresmas do AT e com a sua observância «instituiu» e inaugurou a Quaresma da Igreja, imagem do tempo presente e preparação da páscoa eterna na Terra prometida.
Assim reza o prefácio próprio do I Domingo da Quaresma: «Jejuando durante quarenta dias, Ele santificou a observância quaresmal». O termo latino traduzido por santificou é «dicavit»: dedicou, inaugurou, instituiu, consagrou. Algo de semelhante se afirma no II Prefácio da Quaresma em que se dá graças a Deus Pai porque, no seu desígnio de salvação (salubriter) nos concedeu (à letra: «estabeleceu», «instituiu») este «tempo principal», tempo de graça, «kairos».
O Evangelho do 1º Domingo da Quaresma revela-nos então uma nova profundidade: não é apenas uma história exemplar proposta para edificação dos ouvintes, mas a narração de uma instituição e o seu início. Na Liturgia, a Palavra de Deus demonstra toda a sua vitalidade, verificando-se [= fazendo-se verdadeira] numa comunidade eclesial que, no aqui e agora da celebração litúrgica, entra com Cristo no Deserto e n’Ele, com Ele e por Ele enfrenta com sucesso o antigo inimigo.