A proteção dos menores na Igreja

Encontro no Vaticano decorreu de 21 a 24 de fevereiro. Os bispos de todo o mundo foram chamados a Roma para refletirem com o Papa sobre o tema da proteção dos menores. O clima foi de escuta e de tomada de consciência sobre a realidade dos abusos sexuais na Igreja através de testemunhos e conferências. Nada poderá ficar como antes. É a credibilidade da Igreja que está em causa. Publicamos aqui um olhar sobre este tema no texto de um padre da diocese do Porto que vive e estuda em Roma.

Por João Pedro Bizarro

Sacerdote a estudar Direito Canónico na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma

O abuso sexual de menores é um crime indescritível e quando este é cometido por um sacerdote torna-se ainda mais grave. Não só pelo crime em si mas pelo uso abusivo que é realizado com sacerdócio ministerial. Este confere ao abusador uma autoridade e confiança sobre a vítima, que estando numa situação muitas vezes de dependência, é traída por aquele que devia ser uma presença de Cristo, e que se torna no seu oposto.

A dimensão destes crimes ocorridos no seio da Igreja levou o Papa Francisco a realizar de 21 a 24 de Fevereiro uma reunião com todos os Presidentes das Conferências Episcopais e Superiores dos Institutos Religiosos para encontrar linhas de ação conjuntas, um diretório, que previnam e impeçam estes crimes de acontecer.

Na sua alocução inicial o Papa afirmou: «Confrontado com o flagelo dos abusos sexuais perpetrados por homens de Igreja contra menores, pensei em vos interpelar a vós, Patriarcas, Cardeais, Arcebispos, Bispos, Superiores Religiosos e Responsáveis, para que, todos juntos, nos coloquemos à escuta do Espírito Santo e, dóceis à sua guia, escutemos o grito dos menores que pedem justiça. Sobre o nosso encontro, grava o peso da responsabilidade pastoral e eclesial que nos obriga a dialogar conjuntamente, de forma sinodal, sincera e profunda sobre o modo como enfrentar este mal que aflige a Igreja e a humanidade. O santo Povo de Deus olha para nós e espera de nós, não meras e óbvias condenações, mas medidas concretas e eficazes a implementar. Requer-se concretização

Não é um assunto de todo fácil de resolver, pela sua delicadeza e pelos contornos legais e morais que acarreta. Se em Portugal poucos casos foram encontrados, em algumas partes do mundo as ocorrências foram de tal ordem escandalosas que fragilizaram a Igreja e a mensagem do Evangelho que lhe está associada.

A questão não pode ser vista meramente como uma questão numérica, ou seja, tivemos muitos ou poucos casos, um seria suficiente para ser demais. Mas também não pode conduzir a uma reação irrefletida por parte do Magistério. Muito menos fazer de conta que nada aconteceu, e como a avestruz, meter a cabeça na areia.

A realidade é muito diversa tanto no que respeita aos casos ocorridos quanto à localização geográfica dos mesmos. O problema ganha contornos distintos na Europa, na América, na Ásia ou em África. Para além das implicações internas à Igreja existe todo um leque de outras complicações resultantes dos diversos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais. Mas isso não pode ser relativizado como bem salientou o Cardeal Oswald Garcias de Bombaim, na sua intervenção a 22 de fevereiro:

«Nenhum bispo pode dizer para si mesmo, “Este problema dos abusos na Igreja não me diz respeito, porque as coisas são diferentes aqui na minha parte do mundo”. Isto é só um problema para os Estados Unidos da América ou para a Europa ou Austrália. Isto, irmãs e irmãos, não é verdade. Eu ouso dizer que há casos em todo o mundo, também na Ásia, também na África. Mas mesmo se tivermos razão, somos corresponsáveis, todos nós, neste Sínodo, nesta manhã, somos conjuntamente responsáveis por enfrentar o problema do abuso sexual de menores por clérigos em todo o mundo. Nós, como corpo, somos chamados a nos examinar. Precisamos reconhecer em primeiro lugar o facto do abuso sexual, precisamos reconhecer a inadequação de medidas preventivas, precisamos pedir perdão por isso. Precisamos de nos comprometer resolutamente a tomar medidas para que isso nunca mais aconteça na Igreja, que tenhamos uma Igreja livre do abuso sexual de menores. É possível? (…) Somos todos responsáveis por toda a igreja.»

Esperamos que desta reunião possam sair indicações concretas sobre como lidar bem com estes problemas. Devemos ter consciência que depois de se acusar alguém de pedófilo esta acusação não desaparece mesmo que se tenha provado a inocência do acusado. Vejam, por exemplo, alguns casos ocorridos no passado na nossa comunicação social, alguns com direito a fotografias de primeira página e títulos muito ambíguos.

Mas se o problema se resumisse ao tribunal da comunicação social estariam salvaguardados de alguma forma os mecanismos civis da justiça, mas em alguns países o ordenamento jurídico obriga os bispos a apresentarem uma comunicação formal à justiça local mal saibam de algum caso, sob pena de eles próprios serem acusados de encobrimento. Assim poderíamos perguntar se o habeas corpus, a presunção de inocência, ainda é uma regra que salvaguarda a justiça? E o que acontece em países onde impera a mentalidade jurídica da reparação do dano pelas compensações financeiras? Não faz nascer daqui a possibilidade, pelo menos hipotética, de oportunistas? A discutir estes casos com um padre amigo dos Estados Unidos da América, este dizia-me que algumas dioceses quando recebem uma queixa deste género se limitavam a assinar acordos pré judiciais de compensação financeira, pois ficava mais barato à diocese, sem mesmo averiguar do fundamento da acusação. Sim o risco de se iniciar uma “caça às bruxas” não é de todo infundado.

O Cardeal Blase Cupich de Chicago, a 23 de fevereiro afirmou a necessidade da existência de uma praxis bem estruturada para analisar as acusações contra os bispos, mas que bem pode funcionar também para os restantes membros da Igreja (padres, catequistas, professores) quando o abuso ocorre dentro da mesma. Estes procedimentos não só protegem as vítimas como também servem a justiça. Aponta três pontos 1) criação de um esquema standart para ser utilizado por todos os bispos; 2) criação de mecanismos onde se possa realizar a queixa (Núncio, Metropolita, etc.); 3) existência de passos processuais concretos que possam salvaguardar a justiça. O problema existe e não pode ser ignorado.

Uma questão muito relevante foi levantada pelo Cardeal Luis Antonio Tagle das Filipinas na sua intervenção do dia 21de fevereiro foi a de se saber quem são as vítimas. E interrogou-se: Quem deve a Igreja socorrer? Sem medos afirmou:

«O abuso de menores por ministros ordenados infligiu feridas não somente nas vítimas, mas também nos seus familiares, no clero, na Igreja, na sociedade em geral, nos perpetradores e nos bispos. Mas, também é verdade, nós admitimos humildemente e com arrependimento, que nós os bispos infligimos feridas nas vítimas e no Corpo de Cristo» – afirmou.

A razão destas feridas prende-se com a ausência de respostas às vítimas e pior do que isso, muitas vezes, a própria negação do crime, com encobrimentos dos escândalos «deixando uma profunda ferida nas relações com aqueles a quem fomos enviados a servir».

Utilizando a passagem do Evangelho de João (Jo 20, 19-28) convida à semelhança de Tomé a tocar nas feridas de Cristo, nas feridas deixadas por estes crimes. Só assim teremos a coragem de começar um processo de cura. Processo que vai para além da dicotomia vítima/abusador pois, como afirmou, a ferida é mais profunda e todos os feridos devem ser curados.

Entretanto, a Dr.ª Valentina Alazraki, jornalista, afirmou no dia 23 de fevereiro que a Igreja pode encontrar um aliado na comunicação social e não um opositor. Para isso deve aprender com os erros do passado e evitar a falta de comunicação, optar por uma atitude de transparência, acabar com secretismo que é sinal de abuso de puder. Só assim evitará repetir as situações camufladas de erro e de violência cometida dentro da própria instituição.

Na mesma linha mas com um discurso centrado no correto uso da administração eclesiástica, o Cardeal Reinhard Marx Arcebispo de Munique e Freising, no mesmo dia 23 de fevereiro, apontou importantes passos para combater o secretismo, que ainda hoje acontece na Igreja. Estes processos, de abusos de menores, entram na Congregação para a Doutrina da Fé e seguem um procedimento canónico desconhecido, que nas palavras do Cardeal não garantem a tão desejada transparência:

«Para que a administração aja de acordo com a missão da Igreja e com a natureza da Igreja de “símbolo e instrumento”, é necessário haver transparência e rastreabilidade dos procedimentos administrativos. Os procedimentos administrativos tornam-se transparentes, se for compreensível e rastreável quem fez o quê, quando, porquê e para quê, e o que foi decidido, rejeitado ou designado. Assim, as pessoas que passam por uma administração transparente podem descobrir erros e enganos nas ações administrativas e defender-se de tais ações» – disse o Cardeal Marx.

Esta necessidade de transparência prende-se com a salvaguarda da justiça para com as vítimas e para com os acusados:

«Os princípios da presunção de inocência e da proteção dos direitos pessoais e a necessidade de transparência não são mutuamente exclusivos. O oposto é o caso. Por um lado, um procedimento transparente, claramente regulado e definido garante que os passos corretos devem ser tomados, antes que aqueles que deveriam julgar realmente o façam. Este é o melhor mecanismo de segurança contra preconceitos ou julgamentos falsos sobre o assunto. Por outro lado, um procedimento público e claramente definido estabelece um grau de credibilidade, que permite restaurar a reputação de uma pessoa acusada indevidamente, que de outra forma estaria sujeita a rumores, se a investigação não fosse apropriada, transparente ou conclusiva.»

O Cardeal Marx lançou as seguintes propostas:

«1. Definição do objetivo e os limites do sigilo pontifício;

  1. Normas processuais transparentes e regras para processos eclesiásticos;
  2. Anúncio público de estatísticas sobre o número de casos e detalhes, na medida do possível, e de acordo com as leis do Estado;
  3. Publicação de processos judiciais.»

Como afirmava o Papa Francisco só poderemos encontrar a solução para este problema, e outros que se seguirão, se mantivermos uma visão de fé pois, «sem este olhar de fé tudo o que pudermos dizer e fazer cairia em saco roto. Esta certeza é imprescindível para olhar para o presente sem evasões mas com valentia, com coragem mas sabiamente, com tenacidade mas sem violência, com paixão mas sem fanatismo, com constância mas sem ansiedade, e assim mudar tudo aquilo que ponha em risco a integridade e a dignidade de cada pessoa; uma vez que as soluções que se precisam reclamam encarar os problemas sem ficar presos a eles, ou, o que seria pior, repetir os mecanismos que queremos eliminar» (“Carta ao povo de Deus peregrino no Chile”, 31 maio 2018, n. 2).

Termino este texto com a conclusão em forma de oração da Sr.ª Verónica Openibo, SHCJ, cuja intervenção ocorreu no dia 23 de fevereiro:

«O Espírito do Senhor está sobre, cada um de nós e especialmente aqueles aqui presentes.

Ungiu, todos nós. Ouvimos dizer que durante os relatórios dos grupos, sim, estamos aqui para negócios sérios e os problemas foram resolvidos.

Pregar boa nova aos pobres, os pobres serem vulneráveis, proteger crianças indefesas, buscar justiça para as vítimas de abuso e tomar medidas para evitar que esse abuso se repita.

Para proclamar a libertação aos cativos, para mim, os perpetradores precisam de libertação, conversão e transformação, e não devemos esquecer isso.

e a recuperação da visão para os cegos daqueles que não estão vendo os problemas, até mesmo alguns de nós presentes aqui, ou com foco em proteger “os nossos”, ou manter silêncio ou encobrir a necessidade de recuperação da visão.

Para libertar os oprimidos e proclamar o ano de favor do Senhor, tomando as medidas necessárias e mantendo a tolerância zero em relação ao abuso sexual, libertaremos os oprimidos. Este é o nosso ano de graça, vamos assumir corajosamente a responsabilidade de ser verdadeiramente transparente e responsável.»