A Casa da Música, instituição referencial da cidade do Porto (à semelhança de muitos outros auditórios por essa diocese e distrito fora) tem vindo a apresentar este ano um programa nesta quadra em que o valor cristão do Natal é particularmente valorizado.
Por M. Correia Fernandes
Devemos ressaltar três acontecimentos de obras cimeiras da História de Música e da cultura humanística da Europa: o Messias de G. F. Haendel (1685-1756), a Oratória de Natal e a Missa em si menor, de Johann Sebastian Bach (1685-1750). Esta obras vieram enquadradas por outras propostas, como Cantos tradicionais de Natal, obras de Anton Bruckner (1824-1986), Peter Illich Tchaikovskyi (1840-1893) e de Gustav Mahler (18601911). Também eles foram autores de composições de carácter sacro e religioso.
A apresentação da oratória de Haendel foi designada como “Messias participativo”, por reunir uma orquestra barroca, o coro Cappella Amsterdam e um número de coralistas oriundos de diversos coros da cidade, num grandioso conjunto de 200 vozes, dirigido por Daniel Reuss (1961). Obra das mais conhecidas e celebradas da tradição musical, sobretudo através do seu coro “Alleluia”, constitui um percurso da vida de Cristo, incluindo também o Natal (é conhecido o seu coro “Into us a child is born” (Para nós nasceu um Menino).
Este Menino que nasceu é o tema central da chamada Oratória de Natal, de Bach, um conjunto de 6 cantatas para os dias natalícios, desde a vigília e o dia de Natal até à Epifania ou a visita dos Magos. Os momentos considerados são: 1) Para o primeiro dia do natal; 2)Para o segundo dia do Natal; 3) para o terceiro dia do Natal; 4) para a festa da oitava do Natal, circuncisão do Senhor; 5) para o primeiro domingo do ano novo; 6) Para a festa da Epifania.
O que verdadeiramente impressiona é a riqueza contrapontística e expressiva deste conjunto, apresentado ente o Natal de 1734 e a Epifania de 1735, associando, tal como nas Paixões, a narrativa (geralmente apre
sentada pelo tenor), a reflexão através das árias de solistas, com textos meditativos e espirituais, o comentário dos corais (alguns dos quais recuperam a atualizam melodias já conhecidas de outros autores, entre os quais Leo Hassler – 1564-1612). Os textos narrativos seguem o evangelho de Lucas (na narrativa do nascimento) e de Mateus (na narrativa dos Magos).
As duas obras, Messias e Oratória de Natal, ocuparam cada uma delas cerca de três horas de concerto. A terceira obra (a apresentar no domingo 23 de dezembro) é a grandiosa Missa em si menor de Bach, considerada por muitos a obra máxima da história da música, cuja execução se prolonga para além de duas horas, e registada, como o Messias, em numerosas interpretações. Para mim a mais grandiosa é a de Herbert von Karajan (1908-1989), registada em 1985. Mas outras versões, como a de Karl Richter (19261981), ou de Nokolaus Harnoncourt (19292016) exponenciam a sua grandeza.
Ouvi-la no Natal há-de valorizar certamente o Gloria, canto essencialmente natalício, e o seu “Cum Sancto Spiritu” um belíssimo, grandioso e sublime canto de louvor inultrapassável. Mas toda esta missa constitui um hino à capacidade de exprimir através da música todos os sentimentos e emoções da alma: a prece, a tristeza , o drama íntimo, o júbilo, a meditação interior, o anúncio para o exterior de todo o mistério.
A apresentação da Oratória de Natal foi uma forma de o Conservatório de Música do Porto celebrar o encerramento do seu centenário com esta oferta à cidade. Honra lhe seja, porque abriu as suas portas a quatro dos bons coros da cidade, com a orquestra do conservatório e solistas portugueses e portuenses de grande mérito. Não podia ser melhor ideia nem melhor realização. Com efeito, perante uma sala repleta, com a direção de Martin Lutz, perfilou-se, desde a entrada inicial dos tímpanos, até ao coro final, que associa os corais a um impressionante e festivo comentário de todos os naipes da orquestra louvando festivamente, como os magos, a presença de Jesus no mundo. Este Oratório foi apresentado pela Orquestra do Conservatório do Porto (com seus professores e alunos selecionados), e os Coros da Sé do Porto, da igreja da Lapa, o Ensemble Vocal Pro Música, os solistas Carla Caramujo, Patrícia Quinta, Fernando Guimarães e Nuno Dias, sob a direção do maestro Martin Lutz, de Wiesbaden. Alemanha.
Numa obra destas, uma coisa é ouvi-la apresentada por uma orquestra de câmara com um pequeno grupo de cantores aperfeiçoados (como terá sido originariamente na igreja de S. Tomás em Leipzig), em perfeita sintonia vocal e orquestral (como faz John Eliot Gardiner nas suas perfeitas interpretações); outra coisa é ouvi-la com uma orquestra mais numerosa, mas igualmente rigorosa e entusiasta (como se sentia na atitude dinâmica dos instrumentistas), e por um conjunto de quatro coros, de mais de 200 vozes, que em forte ligação coral transformaram uma obra intimista num esplendor de expressividade anímica. Penso que a plateia sentiu isso mesmo, ao aplaudir com entusiasmo durante longos minutos e interpretação do conjunto. A direção de Martin Lutz foi ao mesmo tempo de sobriedade e rigor, em atenção a todos os pormenores interpretativos, da oquestra aos coros e mesmo aos solistas, de quem valorizava pelo gesto e pelo olhar cada palavra. Apreciou certamente o conjunto, já que no final teve o cuidado de cumprimentar a orquestra, na pessoa da primeiro violino, a quem ofereceu o ramo de flores que lhe foi dado, e ao cumprimentar cada um dos naipes da orquestra e os representantes dos quatro coros.
Há momentos nesta obra dignos de especial registo: o temperamento festivo dos coros iniciais (è excepção do da cantata 5, que era mais meditativo que festivo, lembrando a Paixão. O aspecto festivo é retomado na cantata 6, uma verdadeira explosão de louvor entusiástico, “rejubilante, solene, apaixonado e vertiginoso”, no dizer do programa, em palavras dos alunos do Conservatório. Outro momento é o diálogo entre soprano, oboé e uma voz de eco, num diálogo que se interroga sobre o sentido do acontecimento. Mas tantos são os momentos sublimes desta obra que só se entenderão nas múltiplas relações subtis do seu conjunto.
Uma palavra final para duas referências: a primeira é que o Coro da Sé do Porto, com a orquestra Sina Nomine e solistas (dois deles os mesmos deste concerto) apresentará na igreja de S. Lourenço na sexta feira, 21 de dezembro, sob a direção de Tiago Ferreira, as três primeiras cantatas desta Oratório; a segunda para assinalar o facto de o concerto na Casa da Música ter permitido seguir as palavras do texto através da projeção da sua tradução em português. Uma louvável e pedagógica atitude. Por isso aqui deixamos a vénia ao Conservatória de Música do Porto por esta iniciativa, tão inusual como brilhante, que dignifica a instituição e a cidade.
Legenda da Foto: Martin Lutz com o Cónego Ferreira dos Santos, o diretor do Conservatório, António Moreira Jorge, e os maestros dos Coros intervenientes Tiago Ferreira (Coro da Sé), Filipe Veríssimo (Coro da Igreja da Lapa) e José Manuel Pinheiro (Ensemble vocal Pro Musica).