“Chegou o momento da Igreja viver aquilo que é, sinodalidade”

Em entrevista à VP, poucos dias antes da sua ordenação episcopal (domingo, 16 de dezembro, pelas 16 horas, na Sé de Viseu), D. Armando Domingues considera que em Igreja deve-se ouvir e dialogar com todos para discernir juntos. O novo bispo auxiliar do Porto revela ainda as primeiras emoções após a nomeação do Papa, afirma que a Igreja só cresce a partir da relação pessoal com Cristo e considera que um pastor deve estar disponível a todas as horas do dia e ter a porta aberta e não horários para atender.

Por Rui Saraiva

P: Nas suas primeiras declarações após a nomeação do Papa Francisco disse que quase se sentia em estado “de choque”. Agora com maior tranquilidade diga-nos o que significa ser escolhido pelo Santo Padre para servir a Igreja como bispo?

R: Deus surpreende-nos em cada curva da vida! Ser escolhido, significa sentir-me “convocado” para mais um desafio, o mais exigente de todos até agora! Do pânico inicial que senti, fui serenando, pensando que, afinal, o “SIM” mais difícil terá sido o da minha juventude, quando percebi que Deus era o grande Ideal da minha vida, ou, pelo menos, desejava que o fosse! Não seria, por isso, agora, que iria dizer não! A vida não me pertence. Dada uma vez, não se pode pedir a restituição!

De seguida, por detrás de pequenos acontecimentos, comecei a ver a mão de Deus em pequenos “sinais” como se o Espírito Santo me quisesse desarmar e fazer sonhar o ministério episcopal. Ele continua a falar à Igreja, não só através de quem sofre e grita, mas também através de silêncios que, no mais íntimo de nós mesmos, fazem mais impacto que muitos discursos. Há receio pelo desafio que é esta escolha do Santo Padre, nesta fase da minha vida, mas também muita confiança pois Deus nunca nos leva onde a Sua graça não nos alcance.

P: Como deve ser a ação de um bispo?

R: É mais fácil responder, estando do lado de cá, como padre! Estes dias, tenho repetido: “cada vez gosto mais da palavra ‘padre’”. De facto, padre pode ser pai, irmão, mãe, amigo, companheiro, conselheiro, pastor, aquilo que precisam de nós… Como deve ser a ação de um bispo? Prefiro dizer como gostaria que fosse a minha ação como bispo já que não tenho essa experiência. Resta-me a possibilidade de “sonhar”! Em primeiro, que seja a continuação do ser padre e, assim, um bispo expressão do amor de Deus, um amor “total”. Gostaria de ser alguém que sabe escutar e habitar o mistério de cada padre, cada religioso, cada leigo, cada irmão ou irmã; que saiba perceber o ritmo das comunidades e Instituições para as desafiar a desenvolver a sua missão em função “do todo”, do corpo da Igreja e da sociedade; alguém que sonhe e faça sonhar caminhos novos de conversão para que a Igreja apareça como a Bela Esposa de Cristo; que envolva todo o povo de Deus e procure integrar a todos com a sua riqueza e diversidade; que promova uma “cultura do encontro”. Se estou preparado? Não, mas estou pronto para fazer caminho, pois ninguém o conseguirá sozinho. Sei que conto com a ajuda fraterna do meu bispo, D. Manuel Linda, bem como do D. Pio e D. António Augusto.

P: Qual será o seu lema episcopal e respetivo significado?

R: O meu lema é “Eis a tua Mãe” (Jo 19,26). Na hora de decidir, segui sinais… Fui Ordenado em 1982 e enviado, de imediato, pelo meu bispo, D. José Pedro da Silva, para umas paróquias da Serra do S. Macário – S. Martinho das Moitas, Gafanhão e Covas do Rio – com estas palavras: “Vai, mas olha que Nossa Senhora tem grandes planos para ti…”. Não percebi, mas penso que ele tinha medo que eu não aceitasse! O certo é que Maria me moldou muito a forma de ser cristão e padre, ela que “deu ao mundo o Verbo”, como eu sou chamado a fazer. As últimas 5 paróquias onde fui pároco, todas tinham Nossa Senhora como Padroeira.

No entanto, o lema não se centra em Maria mas no Bom Pastor que, no alto do Calvário e por amor, dá a vida pelas suas ovelhas. Esse é o meu modelo de Pastor que, dando a vida, faz nascer a Igreja, uma Igreja Mãe.

O Papa explica-o na EG 285: “na cruz, quando Cristo suportava na sua carne o dramático encontro entre o pecado do mundo e a misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e do amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27).  

O lema mostra uma cruz que se transforma em estrada de luz, dom do Espírito do Ressuscitado que cria a Igreja. Envolvidos neste mistério, Maria e João. Maria torna-se Mãe, casa, Igreja para toda a humanidade… Nele sobressai a leveza da Mãe que conduz silenciosamente uma fileira de pessoas nascidas na luz do ressuscitado e que invadem o mundo com um amor capaz de mostrar uma Igreja “casa para muitos e mãe para todos” (EG 288).

Por fim, João, bispo e filho, que fará ‘casa’ com Maria! Ele mostra a estrada, uma estrada feita de picos e de abismos como a nossa vida de cada dia. Com Maria – e mãe como ela, – estará apto a acolher e recolher todas as periferias: os desesperados, os angustiados, os exilados, os abandonados, os famintos, os pecadores e tudo o que não é paraíso…e, então, todos saberemos que temos Mãe!

P: Da sua vasta experiência pastoral que balanço faz do caminho percorrido até hoje?

R: Sem dúvida, a vida tem sido cheia de oportunidades! Costumo dizer que tenho sido sempre bafejado pela sorte, pela forma como vivi experiências pastorais diversificadas e aliciantes, algumas delas difíceis mas que se tornaram fáceis. Foi uma aprendizagem contínua. Encontrei em todo o lado pessoas fantásticas, juntos sonhámos e construímos parcelas do reino. Aprendi a viver uma certa “mística do nós”, pois nunca consigo dizer “fiz”, mas sempre “fizemos”, nem “eu”, mas “nós”. “Foi uma sorte” a vida como capelão Militar da Força Aérea e o enriquecimento pastoral em Lisboa, onde estive inserido, a estadia em paróquias de poucos recursos mas onde se cresceu e investiu muito na consciência caritativa e também de assistência aos mais frágeis, no serviço à Diocese como Ecónomo e, depois, Vigário Geral, etc. No entanto, devo destacar os últimos 12 anos de construção de uma comunidade paroquial nova. Toda a vida tinha pensado como seria bom poder “começar tudo de novo”, construir uma paróquia nova, sem o peso da idade e de tradições pouco iluminadas pelo evangelho, que fosse parecida com as comunidades primitivas, construir um Templo novo e estruturas que ajudassem a encarnar a vida vivida e celebrada. Deus deu-me essa graça em seis anos com o então P. Nuno Almeida e, outros seis, sozinho. Foi o tempo da Igreja Mãe que a todos acolhe e conduz a Cristo, tempo para ver crescer uma comunidade fundada na vida do Evangelho e na alegria da Missão, capaz de ser casa para tantos feridos e de tantas periferias. Foi uma escola de vida e comunhão a dizer-me que, nesta mudança de época, é urgente e possível reformar a Igreja. E o Espírito chama com urgência a esta conversão e reforma.

Com o tempo, percebi que a Igreja só cresce a partir da relação pessoal com Cristo que, frequentemente, significa relação pessoal com o Pastor que, em algum momento privilegiado de “encontro”, soube ser Mãe e mostrar o amor concreto com que Deus amava “aquela ovelha” e, assim, também humanamente, a tocou. Dizíamos frequentemente, ao prepararmos bem alguma atividade: “se beneficiar e deixar feliz uma pessoa que seja, já valeu a pena”. Esta irá contar e multiplicar o amor!

P: O Papa Francisco logo no início do seu pontificado falou de “pastores com o cheiro das ovelhas”. O que significa para si esta expressão?

R: No dia em que o Papa foi eleito e dirigiu as primeiras palavras ao povo reunido na Praça de S. Pedro, ouvindo a forma coloquial como começou, “boa tarde” e acabou, “rezem por mim”, disse-o, em sobressalto: “A Igreja hoje começou a mudar”! O Papa Francisco deu alegria e esperança ao meu ministério sacerdotal, renovou-o! Falou depois desta Igreja em saída, deu-lhe Espírito e respiro.

Expressões como esta, “pastores com o cheiro das ovelhas”, sintetizam o que deve ser a nossa atitude de pastores, à imagem do Jovem Mestre da Galileia: caminhar juntos (umas vezes à frente, outras no meio e outras atrás), construir comunhão entre todos, estar disponíveis as horas todas do dia, ter porta aberta e não horários para “atender”, não andar sempre a “engordar” as mesmas ovelhas, descuidando as outras como se não fossem do mesmo rebanho, respeitar as etapas de quem “chega”, fazer de cada ação pastoral, cada sacramento ou sacramental momentos de primeira evangelização, ter uma linguagem que todos entendam, etc.

Esta expressão diz-me ainda que precisamos de sentir o sopro do Espírito. E o Espírito diz que somos, todos, povo de Deus, discípulos do mesmo mestre, peregrinos e pecadores em busca de conversão e salvação. Chegou o momento da Igreja viver aquilo que é, sinodalidade: de ouvir a todos, de dialogar com todos, de discernir juntos.

P: Saudou os diocesanos do Porto nas suas primeiras declarações aos jornalistas. A poucos dias da sua ordenação e entrada na diocese do Porto quer deixar uma mensagem à diocese do Porto?

R: Há dias, visitando a casa Episcopal, fixei os olhos naquele belo rio Douro que se faz mar mais ao fundo, e pensei que, no Porto, serei como gota de água perdida naquele rio. Pareceu-me insignificante uma gota de água e, porém, não sou mais que ela! Mas posso ser gota! Que mais posso trazer ao Porto? O grande projeto de Deus somos nós. É cada um, tal como é, mas sempre em tensão para o que sente que Deus o chama a ser. E, por isso, também arriscamos fazer projetos.

Olhando o Oceano, imagino os horizontes da missão, neste ano a ela dedicado. Ainda não imaginamos os desafios humanos, culturais, sociais e, por isso, também pastorais que nos reservarão a globalização, a crescente urbanização e a revolução digital ou aquilo a que se começou a chamar de tempo da pós-verdade. Para não falar nas múltiplas formas de injustiça, nos problemas ambientais, etc. Uma coisa é certa: somos desafiados a percorrer caminhos novos, a ter os pés no presente mas o olhar no futuro.

Sinto-me pequeno ao pensar em grandes figuras do episcopado desta bela e nobre diocese com quase 1500 anos e que se tornaram “de todos”, como os santos ou heróis. Destaco algumas da história recente, mas presto homenagem a todos: D. António Ferreira Gomes, D. Manuel Martins, amigo sempre presente na minha vida desde 1982, D. António Francisco com quem trabalhei “nas terras da Beira” e cuja amizade perdura…sinto-me pequenino mas honrado e estimulado. Renovo a minha disponibilidade, respeito e comunhão ao Sr. D. Manuel Linda e, nele, aos caríssimos D. Pio e D. António Augusto.

Gostaria de saudar todas as autoridades académicas, civis, militares e de segurança, o Cabido da Diocese, as paróquias com os seus párocos, as famílias e jovens, os seminários, as casas religiosas, as IPSS’s, Confrarias e outras associações que, todos os dias, se empenham na construção de uma sociedade aberta mas justa, fraterna e inclusiva, dando o seu contributo no campo da cultura, do ensino, do trabalho, do desporto, da arte, da economia, do empreendedorismo, etc.

Procurarei, na disponibilidade ao Espírito e ao apelo dos irmãos, caminhar com cada um que Deus me colocar no caminho. O bispo não é o “sabe tudo” e, por isso, até pelos grandes desafios que lhes são colocados, necessita de um grande grau de humildade e espírito de caridade em tudo o que diz e faz. Onde for necessário, podem contar comigo. Na minha oração, já contam todos: sacerdotes, religiosos, leigos e todos os homens e mulheres que vivem, trabalham e sofrem nas casas das aldeias, vilas e cidades da Diocese do Porto.