
Oportunamente a Biblioteca Municipal Almeida Garrett organiza uma mostra para lembrar os 90 anos de Fernando Guimarães.
Por M. Correia Fernandes
À mostra bibliográfica é dado o tema “Conheço as suas raízes” e acompanha a apresentação da obra “Da vida literária do Porto”, que Fernando Guimarães acaba de publicar, e constitui também uma homenagem nos noventa anos deste professor, ensaísta, tradutor e poeta, homem da cidade e da vida cultural do Porto, tendo estudado sobretudo as correntes da literatura portuguesa na passagem entre os séculos XIX e XX e ao longo deste até ao presente, onde sobressaem títulos como “Poética do Simbolismo em Portugal”, “Ficção narrativa e simbolismo”, “O Modernismo Português e a sua Poética”, “Simbolismo, Saudosismo e Modernismo”, “Simbolismo, Modernismo e Vanguardas”, “Poesia Contemporânea Portuguesa”.
Por aqui se vê a incidência especial da sua atenção e suas temáticas: simbolismo, saudosismo, modernismo, completados com duas sugestões complementares: as vanguardas e a contemporaneidade. Para além destes estudos textuais e temáticos, tem também refl etido sobre temas mais abrangentes, como “O Homem, o Sagrado e a Arte”, “História do Pensamento estético em Portugal”, “Sentido e Sensibilidade”, “Artes Plásticas e Literatura”, “A Obra de Arte e o seu Mundo”, “História do Pensamento Estético em Portugal”. Os livros de poesia foram surgindo, e muitos textos foram depois reunidos em conjunto, como nas obras “Poesia 1952-1980” (ed. Modo de Ler). “Poesias Completas 19521988” (Ed. Afrontamento).
Os seus méritos de poeta e de crítico literário (por exemplo em “Colóquio/Letras” e “Jornal de Letras”) mereceram reconhecimento através de prémios da Fundação Calouste Gulbenkian, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e da Universidade de Évora, esta pelo conjunto da sua obra ensaística (Prémio Vergílio Ferreira). É também membro e colaborador do Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica (Porto).
Seja-me permitida uma referência pessoal. Por ocasião das atividades de divulgação cultural promovidas pelo Porto 2001, tive ocasião de pedir a sua colaboração para um conjunto de iniciativas de formação de professores, orientadas para o contacto e diálogo de professores de Português com escritores do Porto, entre os quais se perfilaram Eugénio de Andrade (de quem guardo a sua disponibilidade e atenção com que recebeu vários grupos), Manuel António Pina, com inexcedível atenção, que também foi a de Fernando Guimarães. Não tivemos na altura possibilidades da presença projetada de Agustina de Bessa Luís. Lembro que Fernando Guimarães se disponibilizou para um frutuoso diálogo com os professores, e quando lhe perguntaram sobre o peso da cidade do Porto na sua obra, ele respondeu algo como “correndo o risco de ser inconveniente, devo dizer que não me sinto muito influenciado por ela”, certamente porque a temática da obra ultrapassava os meros limites da cidade enquanto tal. Vendo os títulos das
suas obras podemos compreender porquê: a sua temática não se situa em espaços ou ambientes de espaços físicos, mas no espaço universal da criação e do pensamento. É por isso significativo que agora possamos debruçar-nos sobre o papel que a sua escrita e criação literária pode desempenhar sobre a cidade e os seus ambientes culturais, os cidadãos e os seus universos de pensamento e criatividade.
Para isso importaria o contacto com alguns dos poemas que nos propõe. No seu livro “O Anel Débil” (Ed. Afrontamento, 1992), de que guardo a “simpatia” da dedicatória, perpassam temas de fundo de toda a poesia e de toda a vida: os Mitos (“Há neles qualquer coisa a que nos habituamos… ficaram confundidos com a nossa voz”; a palavra e o silêncio (“Apenas uma palavra que já era o silêncio”; a luz, as cores da pintura, o sentido dos gestos; e o debruçar-se sobre o sentido da morte (“Há qualquer coisa de precioso na morte… o tempo já não existe para este silêncio”), ou a noite que principia e inspira (“É possível que a noite venha ao nosso encontro quando estamos sozinhos”.
A escrita deste livro revela-nos que há uma linha débil (como o anel) entre a escrita em prosa e em poesia. Na verdade toda a poesia é uma componente da prosa criativa, como demonstram os melhores textos de Sophia, de Vergílio Ferreira, de José Saramago, de Miguel Torga e de tantos outros. Neste pequeno livro de Fernando Guimarães convivem harmonicamente versos longos, versos quebrados, versos soltos, ao lado de sonetos no rigor do estilo clássico.
A presença de outras artes e de outros artistas é também envolvente: há Salvador Dali, Paul Delvaux, Matisse, Joan Miró e as suas cores, Klimt, as pinturas da Quinta del Sordo (onde viveu Goya nos seus últimos anos). Há também o pensamento de G. Lacombe. Há a Lacrimosa de Mozart e a “Mater dolorosa”, que pode sugerir os sonetos dos Passos da Cruz, de Fernando Pessoa. Mas encontramos também algo de todo pouco poético: “Aviso a pedir silêncio numa biblioteca”, onde, apesar de tudo “escutamos um rumor conhecido” e “folheamos com mais interesse as mesmas páginas”, como as do livro que fi cou aberto e esquecido onde se pode encontrar qualquer rumor ou sugestão de vozes de outras páginas.
Este livro termina com estas palavras: Tudo o que vês chega de longe: apenas um contorno Ou uma sombra que se desloca devagar. Há gestos Semelhantes a folhas que não caem. Principia agora A luz a espalhar-se à nossa volta e a verdade torna-se mais simples. É como um rosto que reconhece a sua idade.
É este rosto e esta idade de poeta que pode inspirar. Oxalá inspire.