
A poeta (por bom senso, recomendo que se deixe de usar o ridículo termo de “poetisa” que ela mesma detestava, como todas as poetas) Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto em 6 de novembro de 1919. Iniciou-se pois o centésimo aniversário do seu nascimento para cuja celebração um conjunto de entidades se associam. A programação nacional do centenário foi apresentada no dia 6 de novembro de 2018, no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa.
Por M. Correia Fernandes
As iniciativas integrarão temas diversos, desde as artes (começando com um projeto de dança inspirado no seu relato simbólico “O Cavaleiro da Dinamarca”, pela Escola de Dança do Conservatório Nacional. No dia 16 de maio anuncia-se um colóquio internacional sobre a obra de Sophia, na Fundação Gulbenkian, estando previsto outros colóquios, no Porto, em Lagos, no Rio de Janeiro (onde é associada a Jorge de Sena) e em Roma.
No dia do aniversário dos 100 anos é proposto um concerto no teatro de S. Carlos em Lisboa (o programa inclui obras inspiradas na sua escrita). A programação inclui também um ciclo de cinema na Cinemateca Portuguesa, com filmes dos quais a escritora gostava, estando previsto um filme de Margarida Gil, baseado num conto da escritora, e um documentário sobre a autora por Manuel Mozos, além de uma exposição itinerante.
Na Casa das Artes no Porto terá lugar um ciclo de conferências acerca da presença das artes na obra de Sophia. Na travessa das Mónicas, ao bairro da Graça, em Lisboa, na casa onde a escritora viveu mais de 60 anos, será colocada uma lápide evocativa. Programação disponível em www.centenariodesophia.com. Estas propostas recentemente divulgadas levam-nos a reentrar modestamente na obra de Sophia, nas suas temáticas e no seu alcance cultural e civilizacional. Importa relembrar que a obra de Sophia, sendo de poesia e prosa, possui várias vertentes temáticas, de que distingo: – a vertente do olhar sobre a natureza e o mar – a vertente do olhar sobre a sociedade, a denúncia e o espírito fraterno – a vertente do olhar sobre o universo clássico e as suas projeções em todo o humano – a vertente de uma dimensão nova do pensamento, do sentimento e do ser, incluindo a visão da criação poética e a força criadora da palavra.
A vertente do olhar sobre a natureza e o mar é a mais imediata e mais óbvia: ela perpassa cada um dos seus livros (vários títulos têm referências marítimas, como “Ilhas”, “Navegações”, “Dia do mar”, “A menina do mar”,
“Coral”) e mesmo na generalidade dos seus poemas, incluindo quando fala de outras coisas, como a profunda vivência interior dos sentimentos: “Comecei a escrever numa noite de Primavera… Nela o fervor do universo transbordava e eu não podia reter, cercar, conter – nem podia desfazer-me em noite, fundir-me na noite… Como sempre a noite de vento leste misturava êxtase e pânico”. “Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim…
E através de todas as presenças Caminho para a única unidade. Há mulheres que trazem o mar nos olhos, não pela cor mas pela vastidão da alma… O rumor dos pinhais, o verde dos montes e todos os jardins verdes do mar… Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim. A tua beleza aumenta quando estamos sós. A doçura amarga dos poentes… O olhar sobre a sociedade é sempre um olhar crítico e eivado de uma dinâmica da transformação e da esperança, da exaltação da coragem, do apelo à grandeza e dignidade de cada pessoa, que vai da denúncia do “tempo de solidão e incerteza, de traição, de mentira”, do “caminho de injustiça e linguagem do terror” (no seu tempo como neste de agora), desaguando no pregão “Ressurgiremos… pois convém tornar claro o coração do homem”, na busca do “dia inicial, inteiro e limpo”, “para viver a verdade e perder o medo”. O olhar sobre o universo clássico é sempre um olhar de busca de raízes e da germinação dos frutos: os mitos de Ítaca ou de Prometeu, ou de Orfeu, conduzem sempre à “vigília de um segundo nascimento”.
Neles se encontram as raízes da nossa cultural ocidental e certamente também as raízes do diálogo com outras culturas, com a cultura do homem universal. A visão da criação poética e da forma criadora da palavra (criadora da humanidade, do amor, do ideal, da profunda dimensão do humano) foi sempre o grande escopo da poesia de Sophia: o outro é para ela uma vivência, uma descoberta, em empenhamento, a construção do seu universo interior. Tudo está traduzido naquele poema de duas linhas em que, perante o anfiteatro do Epidauro, sentiu que a sua palavra proferida e reconhecida por não ser dela: era a palavra do homem universal.
E já agora, recordemos o poema que dedicou um dia a D. António Ferreira Gomes:
Fortaleza era o homem – o Bispo
Alto e direito firme como torre
Ao fundo da grande sala clara: fortaleza
De sabedoria e sapiência
De compaixão e justiça
De inteligência a tudo atenta
E na face austera por vezes ao de leve o sorriso
Inconsútil da antiga infância.
Agora repousam os seus restos, ou ao menos a sua memória, no panteão nacional. Por onde e com quem dialogará ali a sua palavra?