No centenário de Amadeo de Souza-Cardoso

Completaram-se, em 25 de outubro deste ano de 2018, 100 anos sobre ao falecimento do pintor Amadeo de Souza-Cardoso.

Por M. Correia Fernandes

Era natural de Amarante, do lugar de Manhufe da freguesia de Mancelos, onde nascera a 14 de novembro de 1887. É curioso associar este aniversário da sua morte ao da D. António Barroso (31 de agosto). Morreram no mesmo ano, mas Barroso era bastante mais idoso, nascido em 1854. Mas consta que foi ele que presidiu ao casamento de Amadeo, com Lucie Meynardi Percetto, celebrado de forma discreta em 1914 (com 27 anos), e fixando residência em Manhufe.

Acabou por falecer em 1918, por ocasião de uma visita a Espinho, onde foi vítima de uma “gripe espanhola” que assolou a região. Contava apenas 30 anos! A data do seu nascimento faz recordar outras figuras da nossa tradição cultural, nascidas no final do século XIX, com as quais manteve relacionamento pessoal e artístico.

Fernando Pessoa nasce em 1888 e Almada Negreiros em 1893; Mário de Sá Carneiro em 1890, e Santa Rita Pintor em 1889. Também desses anos são Sonia e Robert Delaunay (1885), pintores com quem igualmente se relacionou quando estiveram em Portugal, bem como Eduardo Viana que nascera em 1881. Os movimentos modernistas e futuristas, a vivência da guerra, a cooperação nas ânsias da intervenção cultural por novas linhas estéticas aproximam as três figuras (Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros), que se tornarão cimeiras do nosso universo literário e artístico. A aproximação conduziu ao projeto de inserir na revista “Orpheu” (1915) trabalhos de Amadeo, previstos para a publicação do número 3 de revista, que não chegou a ser publicado na altura. Mas outra revista, a “Portugal Futurista”, recolheu duas obras suas, “Farol” e “Cabeça Negra”.

Recorda-se que foi no “Portugal Futurista” que Fernando Pessoa publicou os seus emblemáticos “Catorze Sonetos dos Passos da Cruz”, uma meditação de fundo sobre o sentido da sua criação poética, o valor dos gestos criadores e a dimensão escatológica da condição humana. Só nos últimos tempos é que a obra de Amadeo mereceu uma atenção que a aproxima dos grandes criadores do seu tempo e de todos os tempos, como Modigliani, Chagall, Picabia e o próprio Picasso. Podemos aproximar a sua vida das de outros criadores do pensamento e da arte que se conseguem sobrepujar aos horizontes limitados do seu tempo.

Todos os horizontes de um tempo são sempre curtos e limitados. Sobre ele se pode levantar a interrogação: “Se não tivesse morrido tão cedo, como seria a sua obra?” O mesmo se poderá interrogar sobre Mozart, Schubert, Mendelssohn, Pergolesi; ou sobre Mário de Sá-Carneiro (que morreu aos 26 anos) ou Fernando Pessoa (que morreu aos 48 anos, e nos deixou uma obra gigantesca, de pensamento e poesia).

E mesmo de D. António Barroso, que morreu aos 64 anos, após uma vida de dedicação, evangelização e perseguição. A grandeza dos homens não tem idade. Nos últimos tempos o mundo cultural (que não o mundo mediático) tem sido alertado para a sua obra, em exposições ocorridas em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, e no Porto, no Museu Nacional Soares dos Reis.

Também em Espinho se encontra até dezembro uma exposição dedicada a Amadeo, com obras de outros criadores, entre os quais José Rodrigues e Siza Vieira. O Museu Municipal de Amarante tem como titular Amadeo de Souza-Cardoso e guarda algumas das suas emblemáticas obras, considerando-o como patrono da sai identidade cultural. A sua obra brilha pela originalidade, na apresentação de temas populares, nas novas formas de expressão pictórica que, por serem novas não foram logo compreendidas.

A associação dos elementos geométricos com a visualização do real, a expressão de situações simbólicas, o jogo entre o real e o imaginário, entre as formas e o colorido, constroem uma espécie de simbolismo estilizado, pela aproximação de elementos aparentemente contraditórios em combinação criadora – eis alguns dos componentes artísticos que hoje deslumbram o observador. Testemunha de uma época contraditória (a novidade criativa e a guerra emergente, uma década de revelações e de mutilações), Amadeo constitui um símbolo do que tem de mais contraditório a condição humana.