A oração cristã é trinitária

«Deus Trindade, sabes o quanto somos mendigos de Ti» – assim começa a oração pelos seminários, proposta num Guião recentemente distribuído. Quem tem assimilada a forma clássica da oração litúrgica – a oração da Mãe Igreja enquanto tal – e aprendeu a rezar ao colo desta Mãe, não pode deixar de estranhar a invocação desta prece. Sim: porque a oração pública da Igreja deve inspirar e modelar a oração pessoal de cada um dos seus filhos. Ora, pelo menos desde o séc. IV que a Igreja Ocidental formulou assim a «lex orandi» (regra de como rezar): «Nas preces, ninguém deve nomear o Pai em vez do Filho, nem o Filho em vez do Pai, e, quando se está ao altar, a oração deve ser sempre dirigida ao Pai» (Concílio de Hipona, 393, can. 21: EDREL 1252; igual formulação no can. 23 do III Concílio de Cartago, do ano 397).

A Liturgia Romana – a nossa – sempre se manteve fiel a esta regra. Efetivamente, o Pai é o princípio sem princípio de toda a história da salvação e, consequentemente, é também o seu termo sem termo. Ele é a Fonte e a Foz de toda a bênção e para Ele se encaminha toda a prece que se deixa modelar pelos dinamismos da história da salvação: por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito Santo!

Por isso, na eucologia do Missal Romano são excecionais (denotando composição tardia ou importação de outras tradições), as orações presidenciais dirigidas às outras Pessoas Divinas. Já não é tanto assim em relação aos hinos e aclamações de toda a assembleia ou às orações não presidenciais; nestas é mais frequente e antigo o seu endereço cristológico e até, por vezes, pneumatológico.

Surge, entretanto, a questão: se o nosso Deus é Trindade de Pessoas na Unidade inefável de um só Deus verdadeiro, por que não havemos de endereçar as nossas preces diretamente à Trindade?

A resposta a esta pergunta daria certamente para a elaboração de uma tese que não cabe neste espaço. E porque a Igreja, com a sua autoridade assistida pelo Espírito, já aprovou orações dirigidas à Santíssima Trindade, temos de declarar, à partida, que tais formulários não serão, por esse facto, nem erróneos nem ilegítimos.

Entretanto, ousamos dizer que o autorizado e o recomendado nem sempre coincidem. Se a teologia primeira é a doxologia e se a ortodoxia antes de ser reta doutrina é reta oração, então permitimo-nos sustentar que é «mais ortodoxa» a oração feita ao jeito da Mãe Igreja na esmagadora maioria dos formulários autênticos da sua oração pública e oficial.

A oração é, eminentemente, um diálogo pessoal. Um «eu» humano – ou muitos: o «nós» eclesial – dirige-se a um Tu divino. Não se reza à essência ou natureza de uma deidade abstrata. Reza-se, sim, à Pessoa concreta: ao Pai que tudo nos dá e Se nos dá no Filho; ao Filho que procede do Pai e que, pela Incarnação e Redenção, ao Pai nos reconduz na unidade do Espírito; ao Espírito Santo e Santificador, Amor substancial, Comunhão eterna do Pai e do Filho que nos é dado como o Dom e Dador supremo, que faz de nós em Cristo um só Corpo e um Só Espírito, participantes da natureza divina…

Objeta-se com a oração atribuída ao Anjo e divulgada pela Irmã Lúcia. Dando algum valor ao argumento – sejam quais forem os méritos dessa prece – diremos que, aí, o orante não se dirige a uma entidade abstrata mas a um «Vós» e que o caráter pessoal-relacional da oração está razoavelmente prevenido com a menção expressa de cada uma das três Pessoas Divinas: «Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo…». O mesmo acontece nas Ladainhas, que são súplicas litúrgicas: depois de se invocar cada uma das Pessoas Divinas invocam-se, por vezes, as três em simultâneo: «Santíssima Trindade, que sois um só Deus!» Mas, fique claro, estas invocações da Trindade são a exceção e não a regra da oração da Igreja.

Voltemos à oração pelos Seminários: é uma prece inequivocamente cristocêntrica, inspirada no episódio da cura do cego Bartimeu (Mc 10, 46-52). É a Jesus Cristo – e não a «Deus Trindade» que ela se dirige. E muito bem. Por aderência ao texto evangélico, até poderíamos manter a invocação de Bartimeu: «Filho de David, Jesus, eleison!». Este diálogo íntimo, sem ficar no intimismo, ganharia se lhe tivesse sido dada uma estruturação trinitária, segundo a escola da Liturgia da Igreja. Não basta pôr a palavra «Trindade» na invocação para suprir essa deficiência e fazer dela uma oração trinitária. Formação litúrgica, precisa-se.