
São Paulo VI foi, sem dúvida, um dos grandes Papas da História da Igreja. Quanto mais passam os anos, mais a sua figura se agiganta. Foi o grande Papa do II Concílio do Vaticano, o maior acontecimento eclesial do século XX. Foi São João XXIII quem o convocou, lhe definiu o carácter «pastoral» e quem lhe deu o impulso originário. Mas o «Bom Papa João» terminou a sua vida terrena, em 3 de junho de 1963, sem que o Concílio tivesse aprovado qualquer documento… Foi o Papa Montini quem, assumidamente, o reconvocou (Carta Apostólica de 14 de setembro de 1963), quem, de forma lúcida e inspiradora lhe traçou o programa que efetivamente veio a cumprir (discurso inaugural da 2ª sessão, em 29 de setembro de 1963), quem o liderou com firmeza e suavidade e quem, por fim, guiou a Igreja na sua primeira e essencial receção.
Seria, pois, redutor olhar para Paulo VI apenas na perspetiva litúrgica. Seja-nos, porém consentido – porque neste espaço é de Liturgia que se trata – pôr aqui em evidência a relevância do serviço deste Santo à renovação do ministério santificador da Igreja que tem a sua fonte e o seu ápice, precisamente, na celebração dos Sagrados Mistérios. Em 1985, o Documento final da II Assembleia Geral do Sínodo Extraordinário dos Bispos afirmava que «a renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar. Ainda que tenha havido algumas dificuldades, em geral foi acolhido com alegria e com fruto pelos fiéis».
É de supor que, com o passar do tempo, outras dimensões da receção do Concílio e do papel que nela teve o Papa Montini venham a ganhar maior visibilidade. Mas a verdade é que, nesta hora que é a nossa, Paulo VI nos aparece como o grande pontífice da Liturgia. Segundo o testemunho de um dos seus principais colaboradores neste âmbito – o antigo Secretário do Conselho para a execução da Constituição sobre a Sagrada Liturgia – «Paulo VI é o verdadeiro realizador da reforma litúrgica. Se algum Papa dedicou todas as suas energias a um trabalho específico, esse foi, sem dúvida, Paulo VI em relação à liturgia. […] O Papa viu tudo, seguiu tudo, examinou tudo, aprovou tudo» [Annibale Bugnini, La Riforma litúrgica (1948-1975), Roma, 1983, p. 13].
O primeiro fruto bem sazonado do Concílio foi, precisamente, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, votado pela última vez (2151 votantes; 2147 votos a favor e 4 contra) e promulgado em 4 de dezembro de 1963. Paulo VI exultou. O discurso desse dia tem em germe todo o programa da reforma litúrgica que se lhe seguiu:
«Exulta o Nosso espírito com este resultado. Vemos que se respeitou nele a escala dos valores e dos deveres: Deus, em primeiro lugar; a oração, a nossa primeira obrigação; a Liturgia, fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, primeira escola da nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que junto a nós crê e ora, e primeiro convite dirigido ao mundo para que solte a sua língua muda em oração feliz e autêntica e sinta a inefável força regeneradora, ao cantar connosco os divinos louvores e as esperanças humanas, por Cristo Nosso Senhor e no Espírito Santo.
Bom será que recolhamos como tesouro este fruto do nosso Concílio; que o consideremos como aquilo que deve animar e caracterizar a vida da Igreja; de facto, a Igreja é uma sociedade religiosa, uma comunidade de oração, um povo que regorgita de interioridade e de espiritualidade, derivadas da fé e da graça. Se introduzimos agora alguma simplificação nas expressões do nosso culto e se procuramos torná-lo mais compreensível ao povo fiel e mais adaptado à sua linguagem atual, não quer dizer que pretendamos diminuir a importância da oração, colocá-la depois doutros cuidados do ministério sagrado ou da atividade pastoral, nem ainda empobrecê-la na sua força expressiva e no seu valor artístico; queremos apenas torná-la mais pura, mais genuína, mais próxima das suas fontes de verdade e de graça, mais capaz de se tornar património espiritual do povo».