Fátima segundo Saramago

Para o criador romanesco, toda a realidade é uma ficção e toda a ficção é uma forma de realidade. No caso de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, tudo é ficção: aquele Ano não existiu, aquela Morte é suposta, Ricardo Reis é invenção literária heteronímica.

Por M. Correia Fernandes

Estamos pois no domínio completo da ficção. E no entanto também estamos num mundo da realidade: os espaços existiram, os tempos foram vividos, os gestos e os movimentos humanos são plausíveis. Porém, como se inscreve na página introdutória da narrativa, “se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido…”, citando Fernando Pessoa.

É sabido que Ricardo Reis é o heterónimo clássico, helénico e imbuído de um paganismo revisitado, edificado literariamente quando Pessoa quis “escrever uns poemas de índole pagã”, concebido como tendo uma educação em colégio de jesuítas, formado em medicina, expatriado por ser monárquico para o Brasil e regressado a Lisboa depois da morte de Pessoa, nascido antes dele em 1877 e que supostamente lhe terá sobrevivido, morrendo, segundo a ficção de Saramago em 1936, um ano após a morte do seu autor.

É a ficção do seu regresso a Lisboa e o retrato do país que encontra o objeto da ficção de Saramago. O regresso é feito de barco, a chegada a Lisboa associa Camões citado por inversão nominal (“Aqui o mar acaba e a terra principia”) e uma visão pessoana de Álvaro de Campos, em que “o vapor” entra pela barra do Tejo, fazendo lembrar aquele “cais deserto” da Ode Marítima de Álvaro de Campos. O deambular pela cidade e seus espaços transformar-se-á também no deambular pelo país, pelas suas terras, pelos seus espaços parados ou moventes, como o comboio, metáfora da viagem, pelos seus dramas, pelas suas gentes.

É neste contexto que surge a viagem de Ricardo Reis a Fátima. Vai de comboio saído do Rossio, em primeira classe, só dois passageiros não sairão em Fátima. Começam a desenhar-se os estereótipos: “vê-se ajoelhada, de mãos postas”, passou a imagem da Virgem Nossa Senhora e não se deu o milagre”. Porém um gesto faz com que se veja confrontado com a reação: “Milagre, milagre, gritam os peregrinos esquecidos dos seus próprios males”.

O quadro é realista: “a maior parte destas pessoas farão a pé a caminhada de vinte quilómetros até à Cova da Iria”, o motorista da camioneta sobre o pó da estrada de macadame buzina para afastar os peregrinos que iam a pé, “a maior parte desta gente vai descalça”, “ouvem-se cânticos desafinados”, encontra um homem morto. “Se este velho se chamasse Lázaro, e se aparecesse Jesus Cristo, na curva da estrada, ia de passagem para a Cova da Iria a ver os milagres… diria Lázaro levanta-te e caminha… Na Cova da Iria, apesar de muito se esmerarem, nunca fizeram nada que se parecesse”.

Esta visão satírica contrasta com o rigor da descrição: É um mar de gente. Ao redor da grande esplanada côncava vêem-se centenas de toldos de lona, debaixo deles acampam milhares de pessoas”. Fala-se da procissão de velas, da “grande vigília nocturna”. “Tudo parece absurdo e Ricardo Reis, este ter vindo de Lisboa a Fátima como quem veio atrás de uma miragem sabendo de antemão que é miragem e nada mais, este estar sentado à sombra de uma oliveira entre gente que não conhece e à espera de coisa nenhuma” – eis um quadro contrastante com o espírito científico daquela personagem, médico e homem de hedonismos e epicurismos entranhados.

O quadro constitui uma mescla de lugares comuns que associa os enfermos, os pedintes, os vendedores de estampas e imagens, um quadro de “indústria de bentinhos e similares”, “uma esmolinha por alma de quem lá tem”, uma presença da linguagem popular, com que o narrador tempera a visão satírica. Esta torna-se mais percutente quando relata os pedidos formulados: “Senhora de Fátima permiti que eu ande, permiti que eu veja, Senhora de Fátima saraime”. “Não houve milagres. A imagem deu a volta e recolheu, os cegos ficaram cegos, os mudos sem voz, os paralíticos sem movimento”. E conclui “A meio da manhã Ricardo Reis resolveu partir.

Não ficou para o adeus à Virgem, as suas despedidas estavam feitas… Na curva do caminho estava uma cruz de pau espetada no chão. Afinal não tinha havido milagre”. Algumas reflexões se podem fazer: Que Saramago conhecia o ambiente de Fátima; que cria um quadro dos anos 30, que exprime uma visão distorcida e negativista dos acontecimentos, que interpreta superficialmente os sentimentos, as expressões e reações; que os olhos de Ricardo Reis pseudocientíficos servem para criar um quadro da vida nacional inserido em outros contemporâneos: os movimentos políticos, a ascensão da ideologia e propaganda do Estado Novo e suas figuras. Bem se aplicaria, neste como em outros casos, a frase de Quevedo: “nada es verdade ni mentira; todo depende del ojo con que mira”. Esta é a linguagem de todo o romancista.