
Por Ernesto Campos
“Uma coisa é o depósito da fé, outra modo como se enunciam as suas verdades”. Gaudium et Spes” n.º 62
A forma de enunciar a doutrina da pena de morte no Catecismo da Igreja Católica em 1992 não foi muito feliz; e a tentativa posterior de esclarecimento não logrou esbater o desencanto de muitas pessoas. Embora fortemente condicionada e relegada para situações limite lá estava entregue à função punitiva do Estado o poder de matar. Apesar da radicalidade do “não matarás” do decálogo, prevalecia subtilmente a ideia de que, pouco valor se atribuía à primeira. O bem comum, dir-se-ia, sobrepunha-se à dignidade da pessoa do acusado criminoso. A história regista largamente casos que tais..
Conheciam-se, todavia, já vários textos doutrinários dos últimos papas, nomeadamente sobre o direito à vida e a intocável dignidade da pessoa, que, em coerência , proscreveriam a pena de morte; aliás, fora do pensamento da Igreja, já era questionada desde o século XVIII. Mas, o texto oficial do Catecismo da Igreja Católica, em 1992 cometia ao Estado o direito e dever de castigar “incluindo a pena de morte”; e em 1997 explicita-se que ”não se exclui o recurso à pena de morte”. Foi preciso dobrar o século (2/8/2018, data histórica) mais de vinte séculos depois da Cristo, e muitos mais depois de Moisés(?), para ensinar que “a pena de morte é inadmissível porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa” (Art.º 2267 do Catecismo da Igreja Católica).
Algumas exacerbadas sensibilidades ainda se questionam sobre se a pena capital é inadmissível em si, por intrinsecamente má, ou o é apenas na sua aplicação, uma vez que hoje se dispõe de meios eficazes para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas sem recorrer a tal extremo. Questão de direito ou questão de facto? É certo que alguns países a mantêm expressamente nos seus códigos e a aplicam, enquanto outros renunciaram a aplicá-la. É certo que a vemos defendida com rebuscados argumentos religiosos, jurídicos ou culturais; e a opinião vulgar, exaltada em face de crime particularmente hediondo, não raro, a invoca. O simples bom senso, porém, alheio a ociosas especulações, simplifica: trata-se da lei não escrita, pela luz da razão enraízada no coração do homem (S. Paulo), trata-se da radicalidade ética que emerge da autêntica consciência cristã.
Compare-se com a evolução da atitude comum perante a escravatura. Aceite desde a mais remota antiguidade, até a democracia grega a considerava da ordem natural da vida em sociedade, porque “os teares não trabalham sozinhos”; mas ninguém a defenderia hoje em letra de forma. Em Portugal foi abolida em 1836, tal como a pena de morte em 1867. Agora, perguntamo-nos ainda quantos séculos serão necessários para abolir também o conceito e a prática da dita “guerra justa”, outra das perversões da nossa contra-cultura.
Quanto à doutrina da Igreja sobre a pena de morte, se alguma vez teve sentido o antigo dito sentencioso “Roma falou, a polémica acabou” bem se pode, com justeza, aplicá-lo aqui à coragem do Papa Francisco cuja sensibilidade leu bem os sinais dos tempos e o “ethos” da cultura cristã.