
Nos dias que correm lê-se muito. Não livros, nem imprensa bem elaborada, nem sequer as legendas da televisão que correm velozes sob as imagens, para significar que as palavras muitas vezes pretendem valer mais que mil imagens. O que hoje se lê em profusão são as mensagens dos sms, em linguagem quase sempre distorcida, cheia de falhas e erros, de palavras sincopadas e de concordâncias estropeadas. Por isso pode ser de saudar a realização das tradicionais “Feiras do Livro”.
Por M. Correia Fernandes
De duas se tem falado nos últimos dias: a chamada “Festa do Livro”, na Presidência da República, proposta por Marcelo Rebelo de Sousa, com que pretende sobretudo atrair os jovens para o livro e a leitura, e por isso quis abrir a iniciativa nos últimos dias de agosto, antes que os jovens estivessem absorvidos pelas tarefas escolares, segundo as razões que apresentou. Os livros desta mostra são todos se autores portugueses, o que também deve saudar-se, porque os nossos autores são por vezes esquecidos tando pelos leitores como pelas próprias editoras, que justificadamente buscam obras de renome internacional.
O que não deixa também de ser louvável, porque abre outros horizontes e vistas diferenciadas sobre as sociedades e o mundo. A outra feira agora anunciada é a Feira do Livro do Porto, que desde há alguns anos se realiza na mesma data e no mesmo local: no início de setembro e nos jardins do Palácio de Cristal. E por iniciativa da própria Câmara Municipal. Esta decisão parece ter vindo a dar resultados positivos, quer em número de expositores (este ano são 130 pavilhões de exposição) quer em número de visitantes (o ano passado foram anunciados 285 mil) e penso que também de vendas.
Além dos livros de edição recente, saliente-se a possibilidade do contacto com obras mais antigas. E não apenas as dos chamados “alfarrabistas” (uma prestimosa instituição que vai resistindo pelo meio das dificuldades), mas das próprias editoras, porque há livros recentes que, por não serem de figuras públicas ou mediáticas, passam muitas vezes despercebidos. A Feira do livro permite ao leitor redescobrir esses títulos, alguns dos quais nem sequer são conhecidos.
Programa cultural e referências históricas Esta dimensão imediata da feira (a divulgação e apelo à aquisição das obras) é acompanhada por um vasto programa cultural, que foi anunciado pelo próprio Presidente da autarquia, e que inclui colóquios, debates, exposições, e outras iniciativas orientadas para adultos e crianças, um público que especialmente necessita do contacto com os livros, para serem capazes de ir além do telemóvel. Este ano há uma data que se assinala: os cinquenta anos do movimento chamado “Maio de 68”, que revolucionou o mundo universitário, escolar, social e cultural dos últimos tempos. Sendo também prática comum e louvável a homenagem a uma figura do mundo da cultura portuguesa, este ano foi escolhido músico, autor, compositor e intérprete José Mário Branco.
Figura originária do Porto, tornada relevante em tempos mais recentes nos domínios da expressão poética e musical (a poesia tem na música um dos seus veículos mais eficazes de conhecimento e divulgação), surge este ano na sequência de Sophia de Mello Breyner, mulher universal e poeta do transcendente. José Mário Branco surgiu entre nós através de um trabalho musical e discográfico que deve datar do início da década de 1970 do século passado (por mais voltas que dei ao disco original, não encontrei lá a data): o álbum “Mudam-se os tempos mudam-se as vontades”, gravado em Paris mas editado em Portugal, como se lê na sua própria etiqueta: “made in Portugal”. O título do disco transcreve um conhecido verso do soneto de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, a que acrescentava a frase apelativa e de evidente cariz revolucionário: “E se todo o mundo é composto de mudança, troquemos-lhe as voltas, que inda o dia é uma criança”. Porém o disco revelava poemas de outros autores portugueses já então consagrados, como Alexandre O’Neill e Natália Correia, a que associava a figura que depois se afirmou, Sérgio Godinho, ao lado de textos do próprio José Mário Branco.
Importa recordar que José Mário Branco (n. 1942) desempenhou no início da década de 70 um importante papel nos movimentos de contestação ao regime então vigente. Na esteira de José Afonso (1929-1987), mais velho mas modelo assumido, afirmam-se Sérgio Godinho (n. 1945, fez em 31 de agosto 73 anos), também portuense e compositor e músico emigrante, Luís Cília (1943), Manuel Freire (1942), Adriano Correia de Oliveira (1942) e um pouco mais recente, Fausto [Bordalo Dias](1948). Estes autores souberam, através da expressão poética e musical, que associava a polissemia das palavras poéticas, muitas de rara beleza e expressividade, a uma força revolucionária e transformadora em que se podia encontrar a dinâmica de alguma da melhor criação poética, que se designou “poesia de intervenção”.
Lembre-se a força dos poemas de José Afonso (“Vejam bem que não há só gaivotas em terra”), a “Pedra filosofal” (a foça oculta do “Eles não sabem que o sonho”), Sérgio Godinho ( “Na rua lá da má fama faz negócio um charlatão”), o do próprio J. M.Branco: “Onde vais, ó caminheiro, com o teu passo apressado”, com referência ao sebastianismo tardio. Infelizmente, a partir de 1974, o que era poesia de uma denúncia subtil mas muito eficaz como criadora de sentimentos e movimentos coletivos, tornou-se uma poesia de intervenção direta, explícita, agressiva, e perdeu o seu maior valor, o valor simbólico. Isso afetou-os a todos, a começar por José Afonso e pelo próprio José Mário Branco, que naquele festival da canção, creio que de 1974, foi cantar para o palco “Alerta! Às Armas”, uma expressão de um revolucionarismo imediato e bélico, que contrasta com a densidade de composições anteriores. Foi pena. Mas um homem é ele e as suas circunstâncias, como disse Ortega y Gasset.
Agora outros valores se levantam. Os grandes são os de sempre: a solidariedade humana, o sentido fraterno, a luta contra a injustiça, a capacidades de compreensão e de correção, a busca de novos ideais. Que a homenagem a José Mário Branco nos ensine a todos, incluindo aos responsáveis políticos, menos os caminhos da rebelião ou da confrontação e mais os caminhos difíceis mas produtivos da cooperação e colaboração.