Cuidar de…

Por Ernesto Campos

“É propriedade da alma racional o amor dos semelhantes”

Marco Aurélio

Há notícias que os jornais atiram para as páginas interiores e que deviam figurar na primeira página para nos ferirem os olhos tal como nos arranham a alma. São os náufragos do Mediterrâneo recusados pelos países europeus, são os velhos abandonados nos hospitais e recusados pelos familiares… gente descartável como se não fosse do género humano nem da essência que nos define e diferencia. Está, de facto, na moda negar a existência da natureza humana – o que se faz traduz o que se pensa. Admite-se que há uma natureza biológica, uma “espécie”, mas não uma natureza humana, uma “essência” orientadora da ação da totalidade da humanidade. Se assim fosse, perguntaríamos onde está, então, a diferença específica que nos distingue dos outros seres vivos e nos dá o estatuto de género único na árvore da vida.

É claro que o ser humano enxerta na sua natureza biológica uma história, isto é, circunstâncias de tempo e espaços que lhe condicvárias ionam o agir e, portanto, a natureza própria diferenciadora, mas não destroem, antes acentuam o que lhe é peculiar e essencial – a consciência de que “ninguém é uma ilha”; sendo-se humano, sempre ao longo tempo e dos espaços “nada do que é humano nos pode ser estranho”. E os desvios a esta conatural solidariedade, que desgraçadamente hoje vemos, são de tal modo insólitos que a simples e espontânea linguagem diz deles que são desumanos, estranhos à natureza humana. “A essência do ser humano reside no cuidado” diria Leonard Boff, um ethos independente das religiões, resistente à história e persistente nas várias culturas.

Uma velha fábula explica isso um século antes de Cristo. Quatro personagens mitológicas acabam por encontrar consenso sobre a natureza humana e a sua essência. Uma é o Cuidado. Passou junto de um rio, apanhou um pedaço de terra, misturou-o com água e amassou uma figura humana. Veio Júpiter, o rei do Céu, soprou-lhe nas narinas e insuflou-lhe vida. Que nome lhe dar? A Terra queria ser a madrinha, dera a matéria prima; Júpiter queria essa prerrogativa, pois que lhe dera a alma. O Cuidado fora o autor da obra e reivindicava o direito de a nomear. Chamaram Saturno, sábio pai de Júpiter; sentenciou: chamar-se-á homem, de humus, terreno fértil; eu o ensinarei a cultivá-lo. Tu, Terra, o receberás quando morrer; tu, Júpiter, lhe acolherás a alma. Tu, Cuidado, que tiveste a ideia, cuidarás dele enquanto viver.

A lição da fábula é que a solidariedade humana, cuidarmos uns dos outros, é o nosso estado e vocação natural, condição básica da vida; este cuidado desenvolve-se naturalmente como expressão mais alta da liberdade, condição de progresso; e prática da justiça, condição da ordem e da paz.

Para Kierkegaard, o que nos torna verdadeiramente humanos é a consciência das nossas  limitações; vê-las nos outros é o espelho da própria finitude, uma exigência, pois, da   recíproca solidariedade, de mútuo cuidado.

Às virtudes cardeais, exclusivamente humanas e universais expressões do Bem – prudência, justiça, fortaleza e temperança –  junte-se a virtude teologal da caridade, que é a forma cristã de dizer ética do cuidado. Aí está a natureza humana.