O antigo bispo do Porto foi recordado pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto numa sessão na passada sexta-feira, dia 13 de julho.
Por M. Correia Fernandes
Com data de 13 de julho de 1958, fez neste dia 60 anos, escrevia D. António Ferreira Gomes uma memória, em forma de ofício (n.º 271/58), dirigido “Ao Ex.mo Presidente do Conselho – Lisboa”, destinada a definir alguns pontos de uma conversa que lhe fora prometida pelo Presidente Salazar, a quem aliás agradece “a boa disposição de me ouvir”.
Significa isto que, ao contrário da designação pela qual ficou depois conhecida de “Carta a Salazar”, esta memória eram apenas os “pontos fundamentais dessa minha declaração”, que entende não deveria fazer em público, “a fim de poder ser útil à nossa conferência”. Neste escrito se afirmava que as questões que o bispo propunha nasciam deste dado: “aquilo que se põe à minha consciência é um problema diretamente da Igreja”.
Tinha-se saído do ato eleitoral, realizado em 8 de junho de 1958, com a candidatura de Humberto Delgado, da oposição, e de Américo Tomas, candidato oficial, que fora eleito. O bispo afirma não ter votado por estar legitimamente ausente do país, entendendo que a deslocação a Portugal, se a fizesse, como “forma tão extraordinária e pública, não poderia deixar de considerar-se propaganda da Situação”, e seria “praticamente voto aberto”.
O documento enumera depois a expressão do descontentamento da população e especialmente dos movimentos da Ação Católica. Afirma que “não diminui a minha estima e respeito pela personalidade de V. Ex.ª nem a minha admiração pela sua inteligência”. “E no entanto…”, afirma o bispo a “tremenda crise nacional que a campanha das eleições pôs a nu”, referindo problemas postos pela Doutrina Social da Igreja, com o direito à greve, o problema dos salários, a diminuição do tempo de trabalho, as questões do liberalismo e do comunismo, a presença do desemprego elevado, as observações feitas pela opinião comum na Europa, a acumulação da riqueza, o papel dos trabalhadores como “colaboradores efetivos das empresas”. E levanta este problema bem atual: “O pior é pensar-se que se pode realizar qualquer política social com qualquer política económica; que se pode erguer qualquer política económica com qualquer política financeira…”. Anote-se: “as finanças são o primeiro servidor, e não podem ser, senão excepcional e transitoriamente, o senhor da nação”.
Aparecem depois as questões do equilíbrio financeiro, da conveniência de partidos políticos, dos confrontos entre democracia e socialismo, o corporativismo, a promoção de forças da civilização, “hoje claramente as forças do cristianismo”. Insiste que estes problemas são inevitavelmente problemas da Igreja. Frase emblemática: “Esta negação da livre e honesta atividade política é também uma política: apenas má política”. E pergunta: “Pode ou não pode o católico ter dimensão política?” Deve ou não deve o católico ter dimensão política?
Este é o problema da Igreja portuguesa”. Recorde-se que pouco tempo depois a Livraria Telos publicava um livro emblemático nesse domínio: “Dimensões políticas da Fé”, de René Coste, 1973. Valeria a pena regressar hoje à sua leitura. Formula depois quatro questões diretas com que confronta o “Presidente do Conselho”: a liberdade de a Igreja promover o seu ensino social; a liberdade da Igreja na formação cívico-política dos seus membros; a abertura à
difusão dos programas católicos; a possibilidade da criação de organização e ação política dos católicos.
Termina reiterando a reta intenção em tudo o que afirmou, reafirma a sua consideração pessoal e aguarda “as ordens de V. Ex.ª” – as quais nunca chegaram a surgir, a não ser pela negativa e pela ordem mais tarde expressa de não entrada em Portugal se acaso se ausentasse do país. O que aconteceu, após ter decidido um tempo de diálogo pastoral que quis manter em Roma.
O papel e importância desta carta, bem como o sentido deste encontro foi assinalado por Francisco Duarte Mangas, Presidente da Associação, que lembrou que a “Carta a Salazar” foi um documento de grande importância que questionou o regime salazarista, revelou o pensamento de um “sector mais progressivo da Igreja na resistência ao Estado Novo” e lançou assim as bases da abertura democrática da sociedade.
O Bispo do Porto assinalou a profundidade do pensamento de D. António e a capacidade de atenção e intervenção nos grandes valores da pessoa e da sociedade. Arnaldo Pinho, especialista no pensamento de D. António, aprofundou o sentido eclesial a social da sua intervenção e Anselmo Borges, testemunhando que o Bispo tinha prefaciado os seus primeiros livros, citou uma palavra significativa do Bispo: “É preciso não calar a voz dos paoferas”.