Que religião manifestam os portugueses?

Por M. Correia Fernandes

1. São várias as figuras da Igreja em Portugal que escrevem regularmente nos jornais mais divulgados ou de maior audiência na sociedade portuguesa que, ao que parece, cada vez lê menos e se centra mais nos títulos que nos conteúdos, para além dos comentários frustes das redes sociais. Tais escritos surgem geralmente aos domingos, nos diários e nas datas de cada edição nos semanários. Assim, de memória, lembro que Anselmo Borges assina uma crónica semanal no “Diário de Notícias”; Fernando Calado Rodrigues, no “Correio da Manhã” e também agora no Jornal de Notícias; Rui Osório escrevia no “Jornal de Notícias”; José Tolentino de Mendonça escreve no “Expresso”. E aquele que agora especialmente abordamos, Bento Domingues, assina a crónica dominical no “Público”.
Esta preocupação da imprensa “laica” de se adornar com algumas roupagens eclesiásticas em dias domingueiros também deve merecer da parte do leitor curioso por interpretações judiciosas alguma análise. Primeiro por desejarem a escrita e segundo por serem aos domingos. Ler os jornais quotidianos parece signifi car que eles se caracterizam pela ausência de referências a factos religiosos, exceto quando surge algum escândalo, verdadeiro se o houver, ou fabricado, se isso interessar. Analise pois o leitor as causas e se as houver tire as consequências.

2. O motivo desta crónica não é um diário, mas a publicação de algumas das crónicas de Frei Bento Domingues, inseridas nas páginas do “Público” e agora reunidas em edição de “Temas e
Debates” e “Círculo de Leitores”, livro que viu em maio passado a luz do dia. O título que foi dado a esta colectânea, “A religião dos portugueses”, com o subtítulo “testemunhos do tempo presente” também terá o seu alcance: constitui uma proposta do próprio Bento Domingues, que afi rmava em 1987 que a questão da religião dos portugueses precisava de ser reaberta. Este livro poderá ser um contributo para um tal debate e para uma reabertura permanente da questão formulada. Trata-se de uma organização de textos por António Marujo e Maria Julieta Mendes Dias, com uma introdução de António Marujo com o título bem intencional de “Reabrir portas que Frei Bento abriu”, centradas tais portas em três pontos: a refl exão sobre a viagem, a descoberta de caminhos que passam pelo diálogo com outros autores frequentemente por ele referenciados, como seus pares Eduardo Lourenço ou Agustina de Bessa-Luís, ou os mestres de sempre Teixeira de Pascoaes ou Fernando Pessoa; a permanência e discussão sobre o fenómeno de Fátima e os seus múltiplos sentidos; e o sentido do que chama “viagem da insatisfação”, ao retomar o título antigo “A religião dos Portugueses”. Refere ainda António Marujo a inserção nesta edição de um texto inédito, com o título “Uma religião do Coração”, escrito por Bento Domingues expressamente para esta edição, para além da Bibliografia que acompanha o livro em 5 páginas, e de cerca de dez páginas de notas esclarecedoras do próprio texto.

3. Todos sabemos que a escrita de Bento Domingues é uma escrita que, vista do lado da elucubração teológica,
se pode chamar “escrita de desassossego”, título que ele propõe para a análise do fenómeno de Fátima no capítulo V desta reunião: “Tornar Fátima o novo Livro do Desassossego”. A abordagem da perspectiva teológica, suposta em muitos temas destas páginas, misturada com a análise social exigida em
escritos direcionados para o grande público, tornam os textos repletos de ângulos de visão multifacetados. Isto pode constituir a sua riqueza, mas ao mesmo tempo um motivo de desconcerto para muitas mentes, sobretudo para aquelas que estejam mais formatadas em conceitos tradicionalmente estruturados.
Por isso se poderia dizer que estas refl exões, sendo (pessoanamente) de desassossego, e não apenas sobre o fenómeno de Fátima, também podem ser consideradas (camonianamente) de desconcerto.
O título desta crónica põe outro problema: será que de facto os portugueses têm uma religião, ou simplesmente têm religião? Muitas formas de religião, ou de religiões, ou a ausência do sentido mais lídimo desse termo ou conceito? Religião para dentro e laicidade (negócios, interesses, movimentos sociais) para fora? Religião para a mentalidade portuguesa é sinónimo de “religião católica”, ou perfi lam-se novas dimensões?
Tudo isso vem percorrido nos nove capítulos do livro: “A religião dos portugueses”: Artes de ser católico português; uma religião do coração; tornas Fátima o novo Livro do Desassossego; Compreender e interpretar o que aconteceu desde 1917 até hoje; o medo e a segurança na religião; a Igreja e a implantação da democracia em Portugal; a primeira década do Concílio Vaticano II em Portugal.

4. O próprio Bento Domingues reconhece que a ordenação destes textos não constitui um contínuo signifi cativo, mas o encontro de muitas refl exões e estudos em contextos diversos.
No entanto isso não invalida, antes pode enriquecer, através de ângulos diversos de análise, através de uma visão multifacetada da realidade. Como bem acentua o posfácio de Moisés de Lemos Martins, “as representações da identidade nacional remetem para um universo simbólico”, falando oportunamente de “campos de oposição semântica”.

Este é pois um livro não unitário, mas múltiplo. Os ângulos de visão podem ajudar o leitor a valorizar e aperfeiçoar o seu próprio olhar. O que só por si é um enriquecimento.