Editorial – Uma moral para o sistema financeiro global

Por Jorge Teixeira da Cunha

Passou relativamente despercebido entre nós um documento chamado “Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do actual sistema económico-financeiro”. É subscrito por dois organismo vaticanos, a Congregação para a Doutrina da Fé e pelo novo Dicastério  para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral e foi apresentado no mês de Maio passado.

Mas o assunto de que trata reveste a maior importância e representa uma corajosa tentativa de entrar na complexa organização ao nosso mundo, no que se refere às questões financeiras, que são inseparáveis das questões económicas. Todos os dias ouvimos falar da desordem do mundo, da falta de regulação, da corrupção. Mas para lá do escândalo superficial, quase mais cada temos a dizer com cidadãos e como crentes.

Que nos diz o documento? Como sempre, tem uma reflexão de fundo e umas orientações morais normativas.

Quanto ao primeiro ponto, existe no documento uma visão teológica da economia. Esta é apresentada na visão clássica, hoje quase esquecida, segundo a qual a ciência económica trata da troca de bens entre pessoas. Critica o mundo económico de hoje com estas palavras: “A tal propósito, não é mais possível calar que hoje existe a tendência a reificar cada troca de “bens”, reduzindo-os a mera troca de “coisas” (n. 9)”. Esta é uma importante afirmação de fundo que lembra à economia a sua ligação à relações humanas e às necessidades humanas.

De facto, a economia tornou-se abstracta, deixando atrás de si o mundo real em que vivem as pessoas reais e tornando-se uma ciência separada da vida. Sintoma disso é o que se passa com o trabalho. Não resistimos a citar o próprio texto: “Exatamente nesta inversão de ordem entre os meios e os fins, em que o trabalho torna-se de um bem em “instrumento” e em que o dinheiro torna-se de um meio em um “fim”, encontra um fértil terreno aquela inconsciente e amoral “cultura do descarto”. Essa cultura exclui grandes massas da população, privando-as de um trabalho digno e tornando-as «sem perspectivas e sem vias de saída»: «Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas resíduos, “sobras”» (n. 15).

Mas o texto tem também princípios éticos como os que seguem: “Nenhum ganho é realmente legítimo quando diminui o horizonte da promoção integral da pessoa humana, do destino universal dos bens e da opção preferencial pelos pobres. São estes três princípios que se implicam e se exigem reciprocamente na perspectiva da construção de um mundo que seja mais justo e solidário” (n. 10).

Na base destes princípios, dá algumas orientações práticas, como sejam a necessidade de encontrar uma regulação global dos mercados, a necessidade de separar a intermediação financeira do crédito e o financiamento das actividades económicas concretas, mistura essa que tem tido gravíssimos episódios nas crises recentes do mundo e do nosso país, com enormes custos para todos. Um documento pois é um óptimo apelo à política e à moral.