A linguagem oblíqua

Por M. Correia Fernandes

Escreveu Fernando Pessoa nos seus primeiros tempos de poeta de Orpheu, interseccionista e tudo, como diria Almada Negreiros, um poema que intitulou “Chuva oblíqua”, para traduzir uma nova dinâmica ou proposta poética que veio a ser designada por “interseccionismo”, cujo escopo era lançar pistas para uma poesia diferente do sentimentalismo pós-romântico. O modelo geométrico da chuva que cai obliquamente, como se fosse um sol que intersecciona a chuva originando o arco íris na natureza, pretendia criar uma dinâmica poética que cruzasse realidades e sensações, os universos exteriores com os universos interiores do poeta. Sonho, história, navios, espaço e tempo, a “sombra duma nau antiga”, que passa para o outro lado da alma. Ali surgem frases que misturam imaginativamente realidades e sensações em confrontos estranhos, como “Iluminase a igreja por dentro da chuva deste dia”, ou “A missa é um automóvel que passa”, ou imaginando a presença do passado dentro do presente, como “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro… E ao canto do papel erguem-se as pirâmides”.

Foi esta imagem de mescla de conceitos relacionados por mecanismos, óbvios ou espúrios, que me ocorreu ao analisar certa linguagem da nossa comunicação. Há palavras ou conceitos (os conceitos são palavras) que atravessam esta paisagem da comunicação embebidas em esquemas mentais ou dramas fingidos que não são os do sentido original de cada termo, mas o transmutam segundo esquemas mentais assumidos ou supostos. Alguns exemplos: Ouvi há dias um subtil comunicador afirmar, a respeito dos chamados “cuidadores informais” que a “esmagadora maioria” dos seus agentes eram mulheres. Chamava-se pertinentemente a atenção para um tipo de trabalho de dedicação que nem sequer era remunerado, e quando o era isso ocorria de forma informal, não têm dias de descanso nem férias. Dizia então que dessas pessoas as mulheres são a esmagadora maioria.

Todos os dias ouvimos algo de semelhante noutros contextos. Quando frequentemente oiço tais formulações, tenho dado comigo a pensar: então uma maioria esmaga? Quem são o sujeito e o objeto de uma tal ação? Foi aí que me veio à mente a chuva oblíqua: os pensamentos entrecruzam-se e criam uma espécie de nova realidade virtual, como se a maioria caísse pela escada ou pela encosta abaixo. Outro conceito relacionado é o de “arrasar”, que se diz a respeito de tudo: de uma confrontação política, de um resultado de futebol, de um resultado eleitoral. Alguém escrevia que “as famosas arrasam”, outro dizia que “Vieira arrasa F. F. do Porto”. Que mentalidade está subjacente a este conceito: a ambição de poder ou domínio, a vontade de destruir o semelhante, a parecença com as ações bélicas que nos debita a televisão? Outro conceito em uso impensado é o de “disparar”. Diz-se que “as encomendas disparam”, que os preços dispararam, que a procura disparou. O que significa disparar? É um verbo transitivo, quem dispara, dispara alguma coisa. A formulação intransitiva só pode fundar-se na rapidez, que parece não ser o que está em causa.

Também há quem queira “fazer guerra aos incêndios”. Será então que o conceito bélico de “guerra” se torne virtuoso só porque tem por objeto o drama dos incêndios? Da mesma família de conceitos será o de “derrapar”, em expressões como “os prazos derraparam”. Derrapar significa deslizar, que não parece coisa que os prazos façam: eles ficam no mesmo lugar, o que derrapa são aos materiais, as decisões e os seus tempos. Outra expressão que me faz espécie é o uso do conceito de “independente”. A pergunta antiga para casos que tais é independente de quê, ou de quem? Qualquer independente também depende, como se pode afirmar da recente Comissão para os fogos. Chamava-se independente, mas dependia da Assembleia da República. Será independente por depender de muitos, por não depender de nós, por não quererem que dependa do adversário. Diga-se com clareza: nas relações sociais, nas atividades económicas, na ação política, não há coisas independentes: tudo depende de algo ou de alguém.
Deixo para o fim a expressão mais repetida quando se quer transmitir a opinião de alguém, quando se “informa”: “F. não tem dúvidas”. Como sabe o informador que não tem dúvidas? O facto de alguém nos transmitir uma posição ou atitude política ou social não significa que não tenha dúvidas, pode até não ter certezas.

Os políticos não têm certezas, portanto agem e falam do universo das dúvidas. As afirmações correspondem mais a vontades ou intenções que a realidades ou dados certos. Mesmo os cientistas mais positivos têm dúvidas sobre as afirmações mais “certas”. Quantas verdades ditas científicas foram depois desmentidas? Bem se pode aplicar aqui a sabedoria oblíqua de Fernando Pessoa, pela via de Álvaro de Campos, que era engenheiro de formação, e que um dia escreveu: “Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?” (“Tabacaria”, 1918). Parafraseando, poderíamos dizer: Em todas as declarações há tanta gente que não tem dúvidas! Nós que temos todas as dúvidas, estaremos mais certos ou menos certos? Mais próximos ou menos próximos da realidade? É portanto oportuno dirigir um convite aos nossos informadores que querem supor originalidade nas expressões que usam, que recorram menos à linguagem oblíqua, misturando conceitos e suposições, realidades e vontades, o dentro e o fora, o ansiado e o suposto, para um maior rigor na informação e fidelidade às palavras ditas.