D. Pio Alves na Missa da Ceia do Senhor com o Rito do Lava-Pés, sublinhou “a misericórdia, o serviço, a proximidade, o perdão” como “parte inalienável” da identidade dos cristãos. O bispo auxiliar do Porto, na sua homilia, afirmou que “amar até ao fim é a medida do amor dos discípulos de Jesus Cristo”. Publicamos na íntegra a homilia de D. Pio Alves:
Amar até ao fim
1. Esta manhã, como acontece em todo o mundo cristão, o clero da nossa Diocese, acompanhado de outros fiéis, encheu esta catedral. Foi ocasião para, sob a presidência do Senhor D. António Taipa, Administrador Diocesano, e a presença dos Bispos Auxiliares, renovarmos os nossos compromissos sacerdotais. Evocámos também a memória do Senhor D. António Francisco e tivemos presente (e temos presente) o Senhor D. Manuel Linda, bispo eleito para a Diocese do Porto.
A missa Vespertina da Ceia do Senhor – esta celebração – introduz-nos no misterioso mundo do Tríduo Pascal. Revivemos a Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo: Deus que veio e vem ao nosso encontro.
N’Ele e com Ele, somos desafiados a conjugar o mistério do amor com o mistério da dor; a viver a generosidade feita imolação. Acabámos de ouvir de S. João (13, 1-15): “Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. Ainda que o amor custe a própria vida não se detém ante essa aparente barreira.
A morte na Cruz, mistério antecipado para a Ceia do Senhor, não é um golpe de teatro. É a morte verdadeira de um homem verdadeiro que é Deus. Morte, que para além da extrema penosidade física, carrega o inefável peso da irrepetível incompreensão, da inqualificável injustiça, do desprezo cínico da criatura pelo Criador. Não são palavras de circunstância as que integram a exclamação de Jesus no alto da Cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?” (Mc 15, 34); também não o é o perdão que brota da Sua infinita misericórdia: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).
2. Minhas irmãs, meus irmãos:
Não somos deuses, mas somos filhos de Deus; somos cristãos, discípulos e seguidores do Mestre. “Se Eu, que sou Mestre e Senhor, ouvimos no relato de S. João, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”.
Não podemos fugir à carga real e simbólica deste gesto que a liturgia do dia de hoje põe à nossa frente. Gesto que, como nos recorda o Plano Diocesano para este tempo de Quaresma e Páscoa, tem a marca do Amor e da Cruz: “Movidos pelo Amor que se entrega na Cruz!”.
A misericórdia, o serviço, a proximidade, o perdão fazem parte inalienável da nossa identidade e têm as marcas do Amor e da Cruz. As circunstâncias serão as da vida real de cada um: do contexto familiar, das relações pessoais, da vida profissional, do enquadramento social. As circunstâncias contextualizam o efetivo amor ao próximo, mas não o anulam nem o dispensam.
Lavar os pés uns aos outros pode ir desde o efetivo gesto de lavar os pés a quem não o pode fazer até à delicada atenção a quem, por exemplo, precisa de contar, mais uma vez, a história que já sabemos de cor. Lavar os pés é disponibilidade na vida familiar; é qualidade da relação pessoal no trabalho profissional; é atenção aos desprotegidos; é participação, com verdadeiro espírito de serviço, na vida da comunidade eclesial e civil; é presença construtiva nos mundos mais complicados da sociedade, aparentemente, desdenháveis.
“A verdadeira fé é a que nos faz mais caritativos, mais misericordiosos, mais honestos e mais humanos, diz o Papa Francisco (Homilia na Missa com a comunidade católica do Cairo: 29.04.2017). (…) A Deus só lhe agrada a fé professada com a vida, porque o único extremismo que se permite aos crentes é o da caridade”, continua o Santo Padre.
3. D. António Francisco dos Santos, na Homilia da entrada solene na Diocese (06 de abril de 2014), disse que “os pobres não podem esperar”. E o seu sucessor, D. Manuel Linda, na Mensagem à Diocese (15 de março de 2018), sublinhou, nos seus propósitos, “um destaque especial para os mais débeis: os pobres, desempregados, doentes, idosos, detidos e quantos perderam os horizontes da esperança”.
Continua a ser uma dolorosa realidade o cumprimento das palavras de Jesus: “pobres sempre os tereis convosco” (Jo 12, 8). Isto é verdade pelo mundo inteiro, mas também à nossa volta: na nossa casa, na nossa paróquia, nas ruas da nossa cidade. Não é necessária imaginação: bastam olhos para ver e sensibilidade para perceber e não passar adiante.
Sem menorizar nenhuma situação, continua a ser uma realidade gritante, entre outras, o triste espetáculo dos sem-abrigo, nomeadamente na cidade do Porto. Sei como é complexa a construção de respostas, que o sejam de verdade. Mas sei também que podemos correr o risco de gastar energias e meios na idealização de excelentes teses burocráticas que ficam no papel e não chegam à rua. Este é, entre muitos, um desafio à nossa condição de cidadãos e de crentes. Considero que, pela sua gravidade, deve ocupar um lugar na tarde de quinta-feira santa.
Minhas irmãs, meus irmãos:
Há muitos pés para lavar! Amar até ao fim é a medida do amor dos discípulos de Jesus Cristo.
Catedral do Porto, 29 de março de 2018
+Pio Alves, Bispo Auxiliar do Porto