
Por M. Correia Fernandes
De vez em quando somos apanhados por inesperadas notícias saborosas. As figuras lembradas da sociedade costumam sê-lo por ponderosas razões superficiais e passageiras, como a celebridade mediática e as atividades lúdicas, ou então a riqueza ou a transgressão social.
Raros são os casos em que revivescem figuras que valorizam o nosso universo cultural, a nossa alma de povo e mesmo os valores humanos mais marcantes.
Esse é um bom motivo para recordarmos uma dessas figuras: homem de Igreja, espírito da nossa identidade cultural, atento à sabedoria e às criatividades do povo nos campos da arte e da criação. Respigamos a notícia oriunda de um dos palcos do saber nacional.
A 20.ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, que decorre até 28 de abril, evoca o compositor P. Manuel Faria (1916-1983) e pretende lançar um debate sobre a relação entre fé e razão na história da instituição.
A partir do dia 20 de março a Sala de S. Pedro da Biblioteca Geral acolhe a exposição “Manuel Faria – Vida e obra”, recordando que o compositor desejou que a Universidade da “Lusa Atenas” «fosse a casa da sua obra musical, atualmente organizada e catalogada pelo investigador e maestro Paulo Bernardino».
«Nos 35 anos da morte do Padre Manuel Faria, a Biblioteca Geral mostra uma seleção de manuscritos musicais do compositor que procura ser expressiva do seu extenso e diversificado legado musical», referem os organizadores, que mantêm a exposição patente ao público até 14 de abril (10h-17h). Na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra encontram-se 286 manuscritos e 230 obras do autor.
A 14 de abril será apresentada a publicação do estudo e catálogo do espólio de Manuel Faria, seguindo-se um concerto comemorativo. A sessão realiza-se às 21h, na Biblioteca Joanina.
“Casa de vivência da fé, morada da razão: o Théos e o Laos na Universidade de Coimbra” é o tema do ciclo de estudos que decorrerá a 18 de abril, às 14h, na Faculdade de Letras.
«A Universidade não foi nunca um recetáculo passivo do quadro teórico-doutrinal católico e muito menos esteve imune às filosofias de pensamento de cunho revolucionário e progressista», lê-se na apresentação.
Um compositor relevante
Recorda-se que Manuel Ferreira de Faria, nascido em São Miguel de Seide, 18 de Novembro de 1916, faleceu num Hospital do Porto em 5 de julho de 1983, aos 66 anos, foi sacerdote e cónego da Sé de Braga (1966). Formou-se em Roma, no Pontifício Instituto de Música Sacra, com licenciatura em Canto Gregoriano, em 1942. Obteve também o título de Maestro em Composição no Conservatório Nacional de Lisboa. Conhecido como compositor e divulgador de música sacra para a Liturgia, fundador da “Nova Revista de Música Sacra”, distinguiu-se também na composição de música coral, pianística e sinfónica, tanto no campo sacro como no profano, tendo deixado mais de meia centena de obras musicais, de diferente dimensão.
As suas composições nascem do carácter popular e das suas tradições, mas percorrem os caminhos da elaboração sinfónica em estilos contemporâneos, tanto na música coral (como a “Missa em honra de Nossa Senhora de Fátima”, gravada em Viena, e os “Responsórios da Semana Santa”), como na música instrumental, incluindo composições sobre poemas da literatura portuguesa, entre os quais de Antero de Quental e Fernando Pessoa. Frederico de Freitas fez interpretar no Brasil, em várias cidades, com grande êxito, a sua “Suite Minhota” para orquestra. Frederico de Freitas foi admirador do seu trabalho e a ele Manuel Faria dedicou também uma composição orquestral, “Ditirambo a Frederico de Freitas”, para orquestra (1973).
Escreveu mesmo uma ópera, em 1963, para a ocasião do 9.º centenário da conquista de Coimbra aos Mouros, tendo sido encomendada pela Câmara Municipal de Coimbra. A obra intitulava-se “Auto da Fundação e Conquista de Coimbra”, ficou na altura esquecida, mas foi estreada postumamente, em Coimbra em julho de 2004, durante as festividades daquela cidade pelo Choral Aeminium e pela Orquestra Filarmonia das Beiras. Em 1972 obteve o 1.º prémio do concurso nacional Carlos Seixas, com a sua obra “Parábolas da Montanha”, para quatro vozes mistas, e em 1983 foi distinguido com o grau de Comendador da Ordem de Santiago de Espada.
É pois digna de todos os encómios a iniciativa da Universidade de Coimbra ao incluir na sua Semana Cultural a memória deste compositor, prematuramente falecido na cidade do Porto, quando procurava sobreviver à enfermidade. Faz parte daquelas notáveis figuras que podem cair no rol do esquecimento, porque a memória humana é curta, mas cujo valor dá solidez à nossa identidade.