“Os jovens são os grandes aliados do Papa Francisco na busca de uma Igreja verdadeiramente seguidora de Jesus”

Partindo da renúncia de Bento XVI e da eleição de Francisco a 13 de março de 2013, o bispo D. Carlos Azevedo, Delegado do Conselho Pontifício para a Cultura, faz para a VP um balanço sobre os 5 anos do pontificado do Papa Francisco

Entrevista conduzida por Rui Saraiva

Nesta entrevista à VP, D. Carlos Azevedo sublinha “o sentido pastoral ao modo de Jesus” dos gestos, palavras e decisões de Francisco. O Delegado do Conselho Pontifício para a Cultura comenta a liderança do Papa Francisco centrada nos “direitos dos mais débeis e pobres”, no “respeito pela criação” e na defesa de uma economia “orientada por valores éticos e empenhada unicamente no bem comum dos cidadãos”. D. Carlos aborda ainda a Reforma da Cúria Romana, as críticas ao pontificado e o Sínodo dos Bispos sobre os jovens e o discernimento vocacional.

VP: Este pontificado começou com um grande ato de renúncia de Bento XVI. Como caracterizaria essa atitude do agora Papa Emérito?

CA: Considero a inesperada decisão de Bento XVI corajosa e de profunda lucidez, própria de quem se sente verdadeiramente humilde servidor do maior bem da Igreja e, com liberdade e desprendimento, renuncia a governar um barco exigente de muita energia, mesmo física. Rompe com um hábito e abre a porta a outros. Honrou a inteligência teológica com a clarividência da prática pastoral.

VP: Após o Conclave, Francisco chegou à Cadeira de Pedro. Como foi viver aquela noite de 13 de março de 2013?

CA: Desloquei-me para a Praça de São Pedro, convencido que naquele fim de tarde o fumo seria branco. à quinta votação os eminentíssimos cardeais não iam falhar na comunhão de uma escolha. Assim foi, com uma gaivota, a servir de entretinimento, no cimo da chaminé da Capela Sistina. A partir do fumo branco os guarda-chuvas não impediam a comunicação e dois padres da América Latina, ao meu lado, perguntaram: quem pensa que será? Disse-lhes: será Jorge Bergoglio por três razões. Expus a minha teoria e aguardamos aqueles minutos longos. Quando o Cardeal Tauran anuncia o nome eles olham-me e dizem: Mas você é um profeta. Ao que respondi: Não. Estou bem informado.

Depois veio a surpresa das palavras e dos gestos: o nome Francisco, a “boa tarde”, o intitular-se Bispo de Roma, o pedir a bênção ao povo. Aí as lágrimas caíram-me abundantemente, a balbuciar interiormente: isto mudou. Regressei a casa para jantar com a família que vivia comigo, habitado por uma esperança enorme no futuro.

VP: O que mudou a partir desse dia?

CA: Foram tantos os gestos, as palavras, as decisões que apontaram para um sentido pastoral ao modo de Jesus, carregado de profunda humanidade. Concretizava-se o estilo de uma Igreja desenhado pelo II Concilio do Vaticano. Cresceu um novo gosto de ser cristãos, de pertencer à Igreja, porque a mensagem evangélica e a atenção aos mais débeis e pobres, que tantos já viviam e desejavam, agora transparecia e se comunicava diretamente do sucessor de Pedro, entrando em todas as casas, graças a uma comunicação clara e galvanizante.                                         

 

VP: Uma das mudanças imediatas foi a decisão do Santo Padre de ficar a residir na Casa Santa Marta e a celebrar aí quotidianamente a Eucaristia. Qual o significado desta medida, sobretudo, vista a esta distância de cinco anos?

CA: As razões foram dadas pelo próprio Papa Francisco: para manter a normalidade das relações humanas e o contacto pastoral com as pessoas na celebração quotidiana da missa e não apenas nas grandes celebrações festivas. A ausência de qualquer aparente fausto, como se fosse residência de um soberano, e a normalidade das refeições, dos encontros, dos telefonemas, faz o Papa respirar uma higiene mental que precisa. Por outro lado, a exigência da aplicação diária da fé, no concreto da vida, aplicando a Palavra à realidade da história, obrigavam o Papa a refletir e, sem a barreira de um texto prévio, marcar as prioridades e fazer emergir as insistências que o Espirito Santo lhe inspira. Estas decisões, a meu ver, questionam todos os pastores sobre os modos adequados para aumentarem a proximidade e acessibilidade normal dos fiéis e sobre o cuidado a desenvolver com o pequeno magistério, nascida da meditação diária da Palavra transmitida com simplicidade.

VP: Será que não voltaremos a ter um Papa a viver no Palácio Apostólico ou, pelo contrário, a passagem de um Pontífice por Santa Marta é apenas um episódio?

CA: Penso que o lugar depende um pouco da personalidade do futuro Bispo de Roma e da sua experiência prévia, mas a transparência evangélica de um estilo marcará a história da Igreja. Se continua, por razões jurídicas e diplomáticas, a ser soberano de um Estado, o Papa exercerá essa tarefa com um estilo de vida, independente do ambiente da casa, fiel à ordem de Jesus: “entre vós, não seja assim”. A Casa Santa Marta adaptou-se bem e não tem alternativas dentro do Vaticano. Pode muito bem manter-se.

VP: Foram já muitas as medidas internas de reestruturação da Cúria Romana, nomeadamente, com a criação de novos dicastérios. Quando acha que haverá a formalização de uma nova organização da Santa Sé?

CA: Do que espelha das reuniões do Conselho de Cardeais, escolhido pelo Papa Francisco, o ano 2018 será possivelmente o momento para a publicação da nova Constituição apostólica que substitua a Pastor Bonus (1988). São João Paulo II demorou dez anos de pontificado até a esta publicação… Talvez agora se consiga em cinco.

 

VP: Cinco anos de pontificado: um sínodo, um Jubileu Extraordinário, duas encíclicas, duas exortações apostólicas, mais de duas dezenas de viagens apostólicas internacionais e tantas audiências e atividades pastorais do Papa Francisco. Que balanço faz deste pontificado?

CA: Balanço muito positivo que não resulta apenas da avaliação da elite eclesiástica mas atravessa todo o Povo de Deus, mesmo aquela parte mais afastada e até constituída por não crentes e membros de outras religiões. Esta liderança mundial do Papa Francisco brota da liberdade de interesses porque apenas se centra na indicação do maior bem da humanidade e na defesa dos direitos dos mais débeis e pobres, no vibrante apelo ao respeito pela criação, a uma economia que integre o dom e sirva plenamente o ser humano, a uma política orientada por valores éticos e empenhada unicamente no bem comum dos cidadãos.

Os apelos proféticos têm sido mais contundentes para o interior da Igreja. Sendo, como Cristo, o maior critico dos vícios do sistema religioso que tentam os chefes católicos, o Papa Francisco enfrentou as grandes questões eclesiais, abertas no pós concílio e nos tempos recentes, que aliás motivaram a sua escolha. As insistências permanentes numa atitude pastoral que vá ao encontro das periferias e acolha o realismo da vida das pessoas, a começar pelas famílias, interpelam toda a Igreja a encontrar respostas novas.

Muitas das indicações papais já eram vividas por pastores atentos, mas o Papa Francisco alarga e faz os afastados tomarem consciência das propostas renovadas e das mudanças necessárias, implicando todas as pessoas e instituições em profunda conversão pastoral.

VP: Durante este pontificado foram várias as manifestações públicas de alguma resistência a decisões e opções do Papa Francisco. Que comentário lhe merece este facto?

CA: As visões críticas resultam de uma nova liberdade de expressão de opiniões e de um desanuviamento de clima, mas revelam as bases ideológicas que as originam, que desta vez não orientam ou pressionam a Igreja para atender ao futuro, mas prendem-se a um passado que não volta mais. A insegurança dos tempos de transição cultural em que vivemos, pode fazer cair na tentação de um refúgio no que já deu certo, sem reparar que a fidelidade se deve centrar no Evangelho e em Jesus e não em tradições passageiras ou esquemas legalistas de inspiração do direito romano-germânico.

Para mim, mais graves não são os críticos declarados, mas os que, sem ousadia pastoral, bloqueiam a renovação ou envernizam velhos processos com uma capa de obediência meramente verbal, sem a coragem apostólica de Jesus que passa sereno no meio de quem tem pedras na mão, fortalecido pelo Espírito Santo. 

 

VP: Uma última pergunta: este ano de 2018 será marcado pelo Sínodo dos Bispos dedicado ao tema dos jovens e do discernimento vocacional. Qual a sua expectativa em relação a este grande acontecimento?

CA: Os Sínodos permitem sentir o pulsar dos diversos continentes e evidenciar atitudes pastorais emergentes, partilhadas e acolhidas, em ordem a rever práticas e ousar caminhos. As temáticas – jovens e vocações – constituem desafios que já produziram muita literatura e fraseados sonantes, ainda que pouco eficazes no concreto do terreno.

Os jovens são os grandes aliados do Papa Francisco na busca de uma Igreja verdadeiramente seguidora de Jesus, capaz de olhar o futuro sem ilusões e enganos. Porém, não podemos esquecer que, como nunca, os jovens de todo os continentes vivem irmanados graças à cultura digital, plenos de sedução e criatividade, mas desprovidos de quadro ético e de abertura ao bem comum da humanidade. Pastores profetas e jovens profetas, embebidos de radical experiência de Jesus, ainda que desprovidos das vestes culturais do passado, serão convocados a estar nos lugares existenciais onde vivem os jovens e aí comuniquem a novidade da proposta cristã de felicidade.

O discernimento vocacional talvez seja o lugar mais revelador da conceção de Igreja que habita os formadores. O contributo das ciências humanas para escolher pessoas equilibradas, a necessidade de uma forte experiência espiritual de Cristo e do viver em comunidade, bem como uma atual consciência político-económica do futuro da humanidade, parecem-me elementos integradores de um discernimento para o nosso tempo.

A exortação apostólica que resultará do Sínodo será certamente um guia fundamental para uma Igreja que, em grande parte, desistiu dos jovens pela distância da sua cultura e sofre de miopia no discernimento vocacional.