Um olhar sobre o dia: o “Óbus” e as “fake news” invasivas

Há um programa da Radiotelevisão de Portugal, canal 1, designado “Joker”. Este termo “joker”, como “Jackpot” institucionalizaram-se os dois na comunicação social e na linguagem dos jogos de fortuna quase como uma palavra portuguesa, ao contrário do que acontece por exemplo na língua espanhola, em que para “jackpot” se lhe prefere a palavra “bote”, como designativo do prémio acumulado.

Por M. Correia Fernandes  

Nesta coisa da linguagem, honra seja aos falantes da língua espanhola (ou castelhana, que são dois nomes para o mesmo idioma, no dizer do professor de linguística, José Mondéjar) sejam eles castelhanos, andaluzes ou até catalães ou bascos, porque veneram, promovem a respeitam a sua língua. (Cito a obra “José Mondéjar Cumpián, Castellano y Español dos nombres para una lengua”, ed. Don Quijote).

Ora no dito programa há toda uma técnica de concurso e de apresentação que capta a atenção e a participação de gente de grande coturno, com doutorados e investigadores à mistura, o que é digno de registo como curiosidade de conhecimento, porque os prémios não são lá grande coisa, convenhamos. O apresentador, que é homem de qualidades histriónicas e musicais pouco vulgares, que gosta de exibir, nunca deve ter lido o Rodrigues Lobo e a “Corte na Aldeia” (1619), em que se faz notar que um dos defeitos da linguagem da convivência é “rir-se dos seus próprios ditos”, coisa aliás frequente em quantas figuras enxameiam as pantalhas. Também não segue o clássico na conveniência de não falar de si mesmo, que é mal de cada um de nós. E não falemos do abuso absurdo do “okey” que se repete indefinidamente por apresentador e apresentados, às dezenas em cada programa.

Ora, há dias, uma das perguntas incidia sobre língua portuguesa (o que é raro, porque a maior sabedoria está nas canções e nas séries americanas) e procurava investigar o conhecimento sobre o significado da palavra “Obus”. Para apresentar a palavra, aliás bem escrita na formulação, o apresentador insistiu na pronúncia, que transmitiu aos concorrentes da palavra como “Óbus”. Os concorrentes acertaram afinal, dizendo que não sabiam, no sentido de “peça de artilharia”.

Isto não é grande mal, ao lado do corona vírus, da realidade e da sua manipulação (aliás bem evidenciada no novo programa apresentado no passado domingo por Ricardo Araújo Pereira) e de outros dramas com que a sociedade moderna se enfeita. Mas revela o pouco cuidado que damos à “portuguesa língua, forja de brônzeas oitavas”. Pronunciar “óbus” é desvirtuação da palavra, como o malfadado mau uso do plural do verbo haver, os conhecidos hajam, houveram, e vão haver tão frequentes na nossa comunicação, ou da repetição para tudo da expressão “aquilo que é a dinâmica do jogo” em vez de se falar diretamente d assunto. Ou dizer (e escrever) “glicémia” em vez de “glicemia” ou “leucemia” em vez de leucemia, ou “alcoolémia” em vez de alcoolemia.

O acontecimento do “óbus” fez-me lembrar o soneto de Antero de Quental, com o dialético título “Tese e antítese”, em que escreve

Um século irritado e truculento

Chama à epilepsia pensamento,

Verbo ao estampido de pelouro e obus

 

Mas a ideia é n’um mundo inalterável,

N’um cristalino céu, que vive estável…

Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

Talvez de facto também o nosso tempo continue a chamar “à epilepsia pensamento”, à imitação do que Antero discernia nos pensadores e escritores do seu tempo, na diatribe das ideias e correntes artísticas (o iluminismo, o liberalismo, o naturalismo, o realismo, o impressionismo, o simbolismo…). No nosso tempo a tal epilepsia transformada ou suposta como pensamento enxameia nos meios de comunicação, nos comentários das redes sociais, nos debates políticos, nas discussões na Assembleia, nas legislações pretensiosas, na verborreia institucional. Também o nosso, ou mais o nosso, é “um século irritado e truculento”, na abundância e promiscuidade das palavras e na linguagem agressiva e tantas vezes insultuosa que todos os dias nos chega.

Esta atenção à linguagem e à procura da sua correção merece alguns programas “educativos” na comunicação social. Mas os programas em que essa preocupação se supõe, como “Bom português” ou “Jogo da língua portuguesa” confinam com outros em que o gosto pelo estrangeirismo prolifera, como os nomes de programas como “got talent”, “The voice”, “Fama show” ou os genéricos “Reality shows” contradizem alegremente o sentido e o valor do uso da língua portuguesa. E mesmo as propaladas “fake news” que toda a gente gosta de utilizar porque nascem generosamente do modelo americano. O mesmo acontece até nos títulos dos nossos diários, onde é raro não encontrar um palavra ou expressão em inglês. Ao menos em alguns casos há o cuidado de recorrer ao itálico para os estrangeirismos, mas nem sempre.

Sabemos que há as novidades das tecnologias para as quais ainda não se inventaram correspondentes linguísticos. Mas muitas vezes é possível recorrer menos ao exibicionismo e confinar-se na modéstia expressiva do nosso idioma. Que deveria constituir para todos, mesmo para os inventores de programas televisivos, uma busca de nova beleza.