Que bela imagem!

Por João Alves Dias

Que a “arte é o limiar da Transcendência”. Que “a música é a experiência viva do meta-físico”… Já o tinha lido e experienciado. E voltei a senti-lo.

Aconteceu na Casa da Música, no passado dia dezassete, no concerto de Kholodenko, “um dos mais dotados da nova geração de pianistas” Depois nos deliciar com Beethoven e Rachmaninoff, terminou com “Prelúdios”, de Scriabin, compositor russo (Moscovo, 1872/1915) a respeito de quem o libreto dizia: “ Costumava estabelecer, na exposição, a contraposição dos elementos masculino e feminino – entendidos como forças espirituais – que são transformados e interagem no desenvolvimento até alcançar, na recapitulação, a consumação. Fez das suas obras explícitas profissões de fé mística e emanações diretas do seu «eu interior» fundido, sem limitações, com o universo.”

Que bela imagem para a vida matrimonial. Homem e mulher são bem mais que dois corpos que se encontram. São duas “forças espirituais que interagem” ao longo dos anos na busca de um “desenvolvimento até alcançar, na recapitulação, a consumação”. Só, então, realizam o “serão os dois uma só carne” (Gn 2,24). É curioso que este ditame bíblico sobre o Homem, que Deus criou à Sua imagem – “e criou-os homem e mulher” (Gn 1,27)- , só aparece na “Segunda Narrativa da Criação” que, na tradução que uso, é introduzida pela palavra “Recapitulação”. Que coincidência! Na verdade, e contrariamente ao que pressupõe a linguagem jurídica, o casamento, penso, vai-se consumando no decurso da vida na medida em que essas duas forças espirituais vão interagindo em ordem ao mútuo aperfeiçoamento. Para isso, há que criar ou aproveitar momentos da vida propícios à recapitulação. Não é fácil realizar a sentença bíblica porque o “uma-só-carne” não anula “os dois” que permanecem na sua individualidade. Um não se submete ao outro, nem os dois se aniquilam para criar um novo ser.

Cada um respeita-se e respeita o outro como ele é. E realizam-se na medida em que se ajudam no aperfeiçoamento de ambos e de cada um. A fecundidade do casal começa na sua própria intimidade, para depois encarnar nos filhos e extravasar para outras atividades, “fundindo-se, sem limitações, com o universo”. Amar é “fazer das suas obras explícitas profissões de fé mística e emanações diretas do seu eu interior”, numa comunhão de espírito que está para além das contraposições entre duas pessoas com genéticas e histórias bem diferenciadas. E desta recapitulação nasce a sinfonia espiritual que eleva os esposos acima das vicissitudes diárias e os faz sinal do Amor de Cristo à Igreja. Só então, são sacramento.

Importa que cada um, à sua maneira, se reveja no apelo de D. Manuel Martins: – “A minha vida tem que ser sempre uma harmonia. Que eu nunca seja causa de qualquer desafinação.” (Partilhar é bom)