Cultura da Paz

Por Ernesto Campos

“A guerra é um mal que desonra o género humano”

Fénelon

A citação acima bem pode ser uma espécie de axioma de uma cultura da paz; como quem diz, é óbvio que o homem se degrada ao nível dos bichos, que esses comem-se uns aos outros por necessidade de sobrevivência, mas ao homem foi dada toda a terra para que a possuísse e desenvolvesse. A guerra, pelo contrário, como diz o Padre António Vieira,  é “aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas e quanto mais come e consome tanto menos se farta”.

Paradoxalmente, todavia, a história da Humanidade tem sido a história de guerras sucessivas de extermínio mútuo em disputa do meu e do teu, que é sempre esta a motivação da guerra. Para sossego das consciências elaborou-se mesmo uma teoria  da guerra que pretende justificá-la. A guerra seria a “monda natural”, diz-se; o excesso de população e a escassez de recursos explicaria a barbárie do morticínio que permitiria o equilíbrio demográfico. Noutro plano,  mais elaborado,  alega-se que a guerra é fator  de progresso e avanço civilizacional pelas conquistas técnicas que consegue; argumenta-se ainda que a guerra é a compensação de direitos violados e reposição de justiça. Existem, ao mesmo tempo, instituições internacionais, mais ou menos eficazes para evitar a guerra.. Em suma, aceita-se como fatalidade que o homem é lobo do homem. Nos cem anos do Armistício da    “Grande Guerra”, os chefes de Estado juntaram-se para celebrar a paz. Mas é a esses  mesmos chefes de Estado que se atribui o poder  de declarar a guerra. É ainda, afinal, uma expressão de cultura da guerra. Aliás, como que na  sequência do júbilo de celebrar a paz sugeriu-se o absurdo de um exército europeu “para que não haja mais guerras na Europa”, disse-se. Salve-se a piedosa intenção, mas é, de novo, cultura de guerra e não de paz.

Ao terminar em 1918, a 1.ª guerra mundial não acabou de todo. Cessaram os tiros, ficaram as sequelas: O trauma do sofrimento inenarrável dos que tiveram de dormir no chão encharcado da trincheira ou nela morreram ou regressaram deficientes, “gaseados” da guerra química. É incontornável a questão: quem os mandou, com que direito, em nome de quê? Que sabe o soldado das “razões “ da guerra, para onde o mandam como gado para o matadouro?

O armistício não evitou uma outra guerra igualmente mortífera ainda na primeira metade do século XX. Estabeleceu-se uma nova ordem no mundo. A indústria deixou de trabalhar para o bem estar, trabalha para a guerra, a mulher trabalha a par do homem na fábrica, o Estado  ocupa-se de tarefas sociais e não apenas políticas. O centro do mundo deixou de ser a Europa,  é os EUA, a libra foi substituída pelo dólar  como moeda de referência.  Com o Tratado de Versalhes, em 1919, dividiu-se o mundo em duas zonas de influência e ergueram-se muros a separá-las, sobrevieram o comunismo e o nazismo/fascismo. Simbolicamente a primeira guerra mundial só acabou com a queda do muro de Berlim já em fins do século passado. Mais grave do que tudo, radicalizou-se a banalização da guerra e da morte e a trivialidade da violência.

A paz não precisa de ser teorizada porque é o modo natural do viver humano, todavia a encíclica Pacem in Terris, de João XXIII (1963) diz como é. Lê-la em vez de organizar paradas  militares para comemorar os cem anos do Armistício seria expressão de uma cultura de paz.