As andanças do Prémio Nobel da Literatura

Em outubro de 1998 divulgou-se a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago. Nestes dias de 2018 a efeméride foi motivo de um amplo regozijo nacional, justificado, mas certamente excessivo, reunindo os governantes de Espanha e Portugal em grande afinidade política.

Por M. Correia Fernandes

Recordo sempre a declaração do homenageado, com palavras que agora têm sido recordadas pela rádio, algo como isto: quando soube do prémio, vi-me de repente no aeroporto (de Frankfurt), num grande corredor completamente deserto, com a minha mala e gabardine, a pensar: prémio Nobel, encontro-me aqui isolado, sem ninguém que o reconheça…

É certamente uma situação simbólica: os grandes valores da humanidade raramente são reconhecidos, enquanto sobre eles não se lançam os holofotes das publicidades… Depois dos holofotes, mais não é preciso: qualquer mediocridade é notória e endeusada. Entre os muitos escritores portugueses de quem se falou para o Nobel, todos de qualidades que mereciam reconhecimento (cito Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Sophia de Mello, Agustina de Bessa Luís, e o mais plausível e menos referido de todos, Vergílio Ferreira, e António Lobo Antunes), nenhum logrou a consagração de José Saramago.

É digna de congratulação a efeméride deste acontecimento. Foi um reconhecimento à literatura portuguesa e aos méritos de um escritor que se foi afirmando pelo seu próprio pé, para além das circunstâncias que lhe foram favoráveis: a influência de um certo espírito de ideias transgressoras marcadas pela influência das teorias marxistas da arte e da literatura e das religião (espírito evidenciado por exemplo na atribuição do prémio a Dario Fo).

Os acontecimentos observados nestes dias, ao lembrarem-se os 20 anos da atribuição do Nobel, também merecem uma reflexão. Associaram-se os governantes de Espanha e Portugal, nos locais ligados ao escritor (o espaço canário onde escolheu viver, a sua cidade de Lisboa e a sua terra de origem, a Azinhaga do Ribatejo, tornada capital do Nobel), e associaram-se declarações de contornos políticos.

Foi mais uma vez o aproveitamento político dos dados e dos universos culturais. A cultura e a literatura não nascem da política; mas onde há cultura logo se apresenta a política, para se valorizar e encontrar contornos de fidedignidade. Os ministérios ditos da cultura nunca na vida criaram cultura. Procuram regular, segundo as conveniências, aqueles que a criam, e não raro lhes inventam peias e controlos. Reconheçamos que Saramago conseguiu superar essa limitação, e isso é valor que lhe importa creditar. O mérito maior, tanto quanto posso entender, da obra de Saramago situa-se em dois níveis: a atenção ao universo mental, simbólico e intelectualmente consistente do nosso contexto nacional (no que deve ser aproximado de gente como António Vieira ou Fernando Pessoa, cujo trabalho de fundo foi sempre perscrutar a nossa identidade de pensamento e ser); e a reflexão sobre os conceitos e raízes que movem a Humanidade.

Do primeiro conjunto podemos citar livros como o “Memorial do Convento”, obra que faz renascer um pedaço da nossa história, em torno de um momento emblemático de uma certa grandeza económica e agilidade cultural, e o “O ano da morte de Ricardo Reis”, obra que procura recriar universos do século XX em torno de um facto fictício, a morte suposta de uma personalidade suposta. Apenas o ano é verdadeiro, e por isso histórico.

O segundo conjunto é composto por obras que abordam o universo bíblico e evangélico, onde se vê que o autor está marcado pelas raízes do humanismo judaico-cristão, ao buscar a sua problematização à luz difusa e distorcida das leituras positivistas, marxistas e psicanalíticas das teorias da moda ou da pós-modernidade. Podem ser exemplo deste universo o discutido “Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim”. São os fatores profundos da interpretação da condição humana e suas leituras que lhe invadem o espírito e lhe motivam a intervenção.

Curiosamente, importaria lembrar que as obras de Saramago que fundamentaram e conduziram ao Nobel, as publicadas até 1997, terminam em “Todos os nomes”, uma obra sobre os universos da burocracia e suas influências sobre as mentalidades, e incluem o “Memorial do convento” (1982), “O ano da morte de Ricardo Reis” (1984), “A jangada de pedra” (1986), “História do cerco de Lisboa” (1989), “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991) e “Ensaio sobre a cegueira” (1995). O mérito do autor foi não ficar por ali.

Parece que o Nobel lhe deu nova vitalidade. Surgiram depois obras igualmente fundamentais na sua criação: “A caverna” (2000), “O homem duplicado” (2002), “Ensaio sobre a lucidez” (2004), “As intermitências da morte” (2005), “As pequenas memórias” (2008), “A viagem do elefante” (2008), “Caim” (2009). Acresce a continuidade dos “Cadernos de Lanzarote”, reflexões sobre a vida e os acontecimentos, ao jeito da “Conta corrente” de Vergílio Ferreira” ou do “Diário” de Miguel Torga (e de obras de tantos outros escritores que plasmaram as suas meditações sobre a arte e a vida). Quer dizer que José Saramago (1922-2010) recebeu o prémio Nobel aos 76 anos.

Daí até ao final dos seus dias corporais (os pessoais estão aí nas memórias que nos trazem), nos últimos 12 anos da vida, publicou mais sete romances, para além dos outros escritos, na continuidade dos “Cadernos de Lanzarote”.

Lembra-se o Nobel (com toda a sua notoriedade), mas esquece-se politicamente o Prémio Camões, “nobel das letras portuguesas”, como dizem, atribuído em 1995. É sempre assim: o nosso deslumbramento só pode nascer das luzes estrangeiras. Assim é que é bonito.